terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Cisne Negro, a percepção da alma e do ego humano


O filme Cisne Negro (Black Swan/ 2010) mostra a maturidade completa do diretor Darren Aronofsky – há ecos claros de Stanley Kubrick, Roman Polanski e Brian de Palma na película, principalmente nas cenas de psicose, claustrofobia e no arco dramático vivido por seus personagens.

No filme, há também o esplendor da atriz Natalie Portman que já havia demonstrado sua força em Closer – Perto Demais (dirigido por Mike Nichols e lançado em 2005 no Brasil). Contudo, em Cisne Negro Portman se comporta e surge na tela como uma grande atriz.

A história é aparentemente simples. Beth MacIntyre (Winona Ryder), a primeira bailarina de uma companhia, está prestes a se aposentar. O posto fica com Nina (Natalie Portman), mas ela possui sérios problemas interiores, especialmente com sua mãe (Bárbara Hershey). Pressionada por Thomas Leroy (Vincent Cassel), um exigente diretor artístico, ela passa a enxergar uma concorrência desleal vindo de suas colegas, em especial de Lilly (Mila Kunis).

Winona Ryder faz uma ponta medíocre, longe da estrela que ela já demonstrou ser em Época de Inocência. Já Mila Kunis defende sua personagem de forma correta. Mas é o trio composto por Nina, a mãe e o diretor artístico que conduzirá a história.

A chave narrativa é a relação mãe e filha, recheada de tensão e sexualidade reprimida. Além da própria história da peça que será encenada a partir de uma visão particular do roteiro escrito por Mark Heyman. No Lago dos Cisnes, encenado por Darren Aronofsky, um bruxo enfeitiça uma princesa e seu séquito de acompanhantes as transformando em cisnes. Só um verdadeiro amor poderá trazê-la ao normal. É aí que um príncipe se apaixona pela princesa. Entretanto, quando o amor vai se concretizar o cisne negro (na verdade uma bruxa que se faz passar pela princesa) seduz o príncipe. Ao descobrir a traição e perceber a impossibilidade de ter de volta sua vida real, o cisne branco resolve se jogar num abismo para a morte, num vôo de libertação.

Na narrativa do filme a bailarina escolhida para fazer a rainha dos cisnes (que tem que fazer os dois papéis – o cisne branco e o negro) não mostra as características necessárias para fazer o cisne negro, mas sedutor, sexual e maléfico. Desta forma, a história se torna na narrativa da luta entre o cisne branco e o negro pela alma de Nina.

Darren Aronofsky ( do ótimo A Fonte da Vida) constrói uma homenagem à técnica e a capacidade do balé de nos arrebatar contando uma história emocionante através de dança e música. Mas, ele vai mais longe, para além da homenagem. Há também uma lente que perscruta e revela a busca extenuante e, às vezes, degradante por uma perfeição inumana.

Uma busca na qual, bailarinos, atores e até muitos de nós mergulhamos. As cenas mostrando os exercícios repetidos a exaustão e a pressão psicológica torturante que beira a loucura e a esquizofrenia, são um retrato fiel desses momentos particulares. Quem nunca viveu seus momentos de obsessão que atire a primeira pedra...

Outro feliz achado é a química entre Bárbara Hershey e Natalie Portman. Fazia tempo que não se via uma relação tão carregada de energia entre mãe e filha, pelo menos desde Carrie, a Estranha e Noite de Desamor (os dois filmes protagonizados pela excepcional Sissy Spacek).

Alem disso, o filme é praticamente todo construído a partir de percepções subjetivas, muito poucos fatos acontecem para compor o drama e embasar os sentimentos da personagem. Tudo surge dos desejos de Nina. È o mundo que ela vê, teme e busca fazer parte, assim como se defender, que é projetado. E Aronofsky dá a entender que esse mundo não é totalmente real.

Mas seria difícil que fosse real, já que Nina é criada num quarto de boneca, rosa, cheio de bichinhos de pelúcia, por uma mãe dominadora. Quase num conto de fada. E a mãe, que na cabeça de Nina é uma presença constante, está sempre a espreita, sondando, escutando os seus baques e gemidos, lembra mais uma madrasta má ou uma bruxa, que observa até através dos quadros. É uma mãe eternamente negra – notem como Bárbara Hershey sempre veste preto e Nina invariavelmente usa roupas mais claras, apresentando a primeira dicotomia entre o bem e o mal. A atriz faz uma mãe que nutre um misto de satisfação, inveja e posse. Que se sente ameaçada porque SEU objeto de prazer e realização quer assumir vida própria. Bárbara Hershey constrói seu personagem no detalhe, cada olhar, gesto, observação. Ela consegue estar presente mesmo ausente.


No filme, enquanto o clima de tensão se avoluma em casa, Nina começa a desabrochar seu desejo sexual. É como se a menina se digladiasse, quer se fazer mulher, mas também teme a fúria e a presença da mãe. O roteiro é magnífico ao fotografar esse momento e mostrar a inevitabilidade da tragédia que ronda Nina, que, para escapar das conseqüências de suas escolhas, prefere se partir em duas. O problema é que uma das partes a seduz, a machuca e provoca, assim como o cisne negro seduz e provoca o príncipe. Intrincado, não? Mas magnífico.

Todo o ato final do filme é arrepiante. O balé que levita, não toca mais o chão. Os efeitos especiais simples, que nunca roubam a cena, mas contribuem para dar mais veracidade a composição da personagem.

A fotografia é outro ponto alto, trabalhando com espelhos e sombras, insistindo na sensação de divisão, de um outro universo, como um negativo de um filme. A música arrebatadora de Tchaikovsky, a câmera, as vezes nervosa, outras vezes seguindo Nina em seus rodopios, e no exercício exaustivo da repetição. A montagem linear, mas ao mesmo tempo tensa. Tudo isso imprimem ao filme um universo que vai além da tela, sai do quadro...

A história da luta do Cisne Negro e do Cisne Branco dentro de Nina compõe pelo menos duas metáforas. A primeira, mais obvia, conta sobre a luta do bem contra o mal dentro de nós, da sedução e do sexo versus a castidade e a suavidade. É uma busca religiosa. A outra metáfora é sobre o mundo que nós enxergamos e como desejos e medos viram a própria realidade que nos consome, é uma busca ética.

No balé encenado no filme, o Cisne Branco, como uma alma aprisionada, busca o seu príncipe para libertar-se, mas sua parte obscura acaba corrompendo o seu próprio salvador e não resta outra alternativa a não ser encontrar outra via de libertação: a morte – na história original contada em quatro atos pelo compositor russo Tchaikovsky, quem morre é o príncipe, enquanto a donzela continua aprisionada ao seu corpo de rapina.

Darren Aronofsky construiu um filme que praticamente expressa um movimento religioso quando reflete a busca de Nina pela perfeição e olhamos o seu produto final: dois cisnes em cena. Mas também é uma aula de psicanálise sobre o ser humano, de como a mistura de neurose, solidão, medo e egoísmo podem ir emparedando a alma até a sua completa destruição. Em última instância o filme trata da eterna luta interior pela libertação de medos, conceitos ou de uma ilusão qualquer.

Ao final da batalha vivida por Nina a sensação é de deleite e choque. Um grande filme.