Contos

Estou criando essa nova página para publicar algumas histórias, reais e irreais que às vezes me assaltam e assim levam e deixam algo em mim...


Acho que vou por aí

O Porto do Capim dormia sob o zunido dos mosquitos, envolto no silêncio dos porcos enlameados próximo as águas do mangue e dos caranguejos que piscavam e andavam tranqüilamente na lama. Papa-capim apareceu na porta de casa e espichou o olhar para o final da rua. Viu o sinal feito por Hora H e Cabeção, que o esperavam. Voltando-se para dentro de casa, olhou se os três irmãos ainda estavam dormindo na sala. Só aí terminou de abrir, cuidadosamente, o resto da porta. Tudo isso com a respiração suspensa, rezando para não acordar o pai nem a mãe, que foram dormir disputado uma garrafa de cachaça na noite anterior.
Saiu e encostou a porta com um papelão.
Fazia tempo que Hora H e Cabeção insistiam para que ele fosse embora com eles, mas o menino tinha medo, apesar de gostar da companhia dos outros dois. Cabeção havia sido expulso de casa pela mãe, que reclamava que ele não trabalhava e não ajudava em nada, só era uma boca a mais para comer e ainda má influência para os outros filhos. Já Hora H era daqueles que volta e meia sumia e reaparecia. Morava sozinho com uma catadora de papelão que enlouquecera a cerca de dois dias ao perder os cavalos que puxavam a carroça de reciclado. Os animais faziam parte de um lucro de dez anos com a venda do material e pastavam soltos como medida de economia quando, um dia, simplesmente desapareceram. Quando a mãe de Hora H deu por si, eles estavam se debatendo e urrando, com os olhos e bocas ensangüentadas. Todos envenenados. Ela conseguiu um revólver e os matou a todos. Depois passou a andar de roupa mínima pelas ruas da cidade puxando um desses carinhos de compra de supermercado. Hora H ficou sem ter para onde ir.
Dizem que há 15 anos, ela apareceu grávida. Tinha concebido Hora H numa esquina escura, estuprada enquanto esperava a chuva estiar. Desde ali a mulher já não batia muito bem da bola... nem o menino depois que nasceu.

O tempo estava meio frio e Papa-capim tentou se aquecer esfregando as mãos nos braços, que estavam levemente arrepiados do vento. Depois se uniu aos meninos. Os três subiram as ruas desertas da favela, ainda na penumbra do fim da madrugada. Andaram em silêncio, saindo da cidadela úmida.
Foram caminhando assim, até alcançar as partes nobres da cidade, onde ficaram virando latas, vasculhando lixos, pedindo um trocado e descolando bolsas dos braços enrugados das velhas senhoras.

Agora estão nos fundos de um supermercado, catando iogurtes vencidos, frutas apodrecidas, biscoitos moles, pães duros e conservas amassadas. Tudo de graça. São várias as crianças que disputam entre si, brigam, tomam, carregam e escondem os mantimentos. Um mais experiente diz para um novato:
- Dizem que tão ruim, mas não tão. Tá tudo bom. – garante, com a boca lambuzada de iogurte. O menino raspa o pote com o dedo indicador que mete com ansiedade dentro do plástico.

Dias atrás, perto dali, Cabeção viu um mendigo dormindo encostado na grade de uma dessas casas ricas. De dentro da casa veio vindo um rapaz que avançou sobre o mendigo com um cachorro pastor alemão. O animal tinha os dentes à mostra. Dava para sentir as baforadas do cão do outro lado da calçada. O homem mijou-se de medo e partiu, enquanto Cabeção olhava para o rapaz dono do cão que voltou para dentro da casa ignorando o menino descalço do outro lado da calçada.

Papa-capim e Hora H ainda se digladiavam para conseguir um pedaço de pão duro, quando Cabeção, já satisfeito, foi subindo a rua de casas chiques, sombreadas por árvores frondosas, com calçadas convidativas para um cochilo depois do almoço. O menino segurava um pau de vassoura quebrado na ponta, que usava para cutucar, bater, se apoiar. Que fazia de espada e baliza de banda militar. Atrás, Papa-capim e Hora H, quando viram o amigo se distanciar começaram a se mover, não antes de xingarem uma menina que consideraram carniceira e encrenqueira, e que teimara em brigar por causa de um pouco de arroz que sobrava do almoço dos funcionários do supermercado.
- Pode ficar com essa merda! – disse Papa-capim, enquanto Hora H cuspia na garota.

Lá na frente, Cabeção, o mais velho, viu alguma coisa dentro do terreno baldio. O terreno era ladeado por duas belas casas brancas, de portões automáticos e cercas elétricas nos muros altos.
O menino entrou terreno adentro. Um matagal que chegava a altura da cintura e era esconderijo de ratos, depósito de lixo e motel improvisado de algumas domésticas das redondezas.
No centro do terreno estava deitado o mesmo mendigo que ele tinha visto ser escorraçado pelo pastor alemão dias atrás. Agora, o homem arfava quase inaudível, desacordado. Vendo o estado do mendigo, Cabeção conclui que ele devia ter levado uma surra e depois se arrastado para dentro do mato para morrer em paz. Neste momento, Hora H e Papa-capim surgem na entrada do terreno chamando estridentemente.
- Silêncio! – disse, fazendo sinal para que os outros se aproximassem. Essa seria a prova de fogo de Papa-capim, pensou Cabeção, que fez sinal para Hora H se posicionar.
Foi assim que na entrada do terreno ficou Hora H, respondendo ao olhar de cumplicidade do mais velho.
Quando Papa-capim se aproximou do corpo, viu um homem de seus 45 anos, ferido e ensangüentado, completamente desacordado, mas ainda vivo. O menino cutucou-o com o pé, tentou chamá-lo, acordá-lo, mas viu que não conseguia resposta e disse:
- Será que não dava pra gente levar ele pra algum lugar? Chamar alguém?
- Melhor não – opinou Hora H, de onde estava.
- Não adianta Papa-capim, ele não tem mais jeito – explicou Cabeção, vendo o olhar de preocupação do menino. Papa-capim não devia ter mais que 12 anos, mas era bastante alto para a idade.
- Você acha que ele vai morrer?
O amigo acenou afirmativamente com a cabeça.
- Mas a gente não pode deixar ele assim.
- E fazer o quê? – quis saber Hora H.
- Não sei... qualquer coisa...
Cabeção, que estava acocorado, olhou o rosto do homem, o peito lacerado e perguntou:
- O que você quer fazer?
- Ajudar, de alguma forma...
- Não é assim que a coisa funciona, Papa-capim.
- Ei, você já devia saber que não dá para sair ajudando todo mundo assim – falou Hora H, em tom de ironia e com um olhar esquisito.
Cabeção levantou-se, olhou ao redor, e depois, como se estivesse tido uma idéia, passou por Papa-capim afogueado.
- O que foi Cabeção, o que cê tá procurando? – quis saber Hora H.
O garoto retornou com mais dois pedaços de paus, entregou um para Papa-capim e outro para Hora H e tomou o seu.
- Vamos terminar o serviço.
Levou um tempo até eles entenderem.
- Cê tá doido Cabeção! –disse o menino, jogando o pau longe.
- É tua entrada no grupo, se você não participar é melhor voltar para casa. Como a gente vai poder confiar em você e ter certeza que uma hora dessas cê não vai dedurar a gente?
- Mas eu não posso!
- Vai ter que poder.
- A gente te ajuda – riu Hora H, um riso solto, meio desconjuntado e demente.
- A gente só não vai deixar ele sofrer mais – disse Cabeção, mentindo. Cabeção tinha um certo dom com a palavra e uma boa capacidade de levar na lábia, esvaziar o sentido das coisas e distorcer as ações, as intenções e até as lembranças. Era assim que induzia os outros a fazerem sempre o que ele queria e foi por isso que sua mãe o mandou embora, a mulher tinha medo do homem que estava se tornando o rapaz e de sua influência nefasta sobre os demais. No fundo, ali, Cabeção queria saber até onde o amigo estaria disposto a ir e o testaria com crueldade.

Nessa hora passou na mente de Papa-capim todos os defuntos que já viu, deitados no chão, ‘dormindo’ ensangüentados dentro dos carros, escanchados nas calçadas, atropelados nas ruas, mortos a faca, à bala, a paulada, a pancada. Sentia as pernas tremerem. Esta seria a primeira de uma série de mortes, pensou, depois se tornaria um assassino lendário, temido e invejado.
Não, não podia fazer isso. Balançou a cabeça e saiu andando, decidido a ir embora.
- Eu não vou fazer isso!
Hora H impediu que ele saísse e segurando-o na entrada do terreno disse:
- Papa-capim, é uma única dor e acabou, melhor do que ficar morrendo aos poucos...
- Deixa Hora H, a gente não precisa de nenhum medroso.
- Não sou medroso – reclamou – só não quero matar e nem acho que ele merece apanhar mais.
- Não é uma questão de querer nem de merecer, é a vida, se você não matar, um dia é você que vai tá deitado no chão, e pensa que outro terá peninha e vai querer te ajudar? Nesse mundo é matar ou morrer. E tem mais, se fosse eu que tivesse aí no chão, todo lascado, também não ia querer morrer aos pouquinhos. Para mim, se é para ferrar, é melhor fazer logo de uma vez. E aí, Papa-capim, tem coragem de matar quando é preciso, ou prefere fugir feito um bandido!?
- Por mim é melhor deixar que ele vá morrendo mesmo, assim ele vai se acostumando com a idéia

Enquanto isso, o homem se esvaia. Morria e não morria, ao longe ele ouvia a discussão, sem poder tomar partido, nem se defender. Já não sabia nem mais qual era a melhor opção.
Papa-capim pensou no pai e na mãe, nos tapas, cascudos, palmadas e beliscões que sofria. Na rotina de trabalho extenuante em casa, em ter de cuidar dos pequenos, nas bebedeiras e brigas dos dois. Uma vez Papa-capim olhou pela janela e viu o pai destruindo a casa, quebrando tudo. Estava bêbado. Quebrava armário, prato, panela, batia na mãe. Quando o homem viu que era observado jogou a primeira coisa que lhe caiu na mão na direção do menino. Um vidro de perfume, junto com um palavrão. Se ele não tivesse abaixado, teria sido nocauteado, quem sabe até não estivesse hoje carcomido pelo vermes, mais um adubo para flores de cemitério. Odiava o pai.
Lembrou da mãe chorando, reclamando de um marido que vivia a se vangloriar, cheio de mulheres. Comeu todas as suas amigas. “Aquelas vadias”, ela dizia. E não parava de chorar, brigar, beber. Mas preferia estar do lado dele, apanhar, satisfazê-lo na cama, mesmo depois de levar uma surra. Tinha um ciúme doente. Não entendia a mãe.
Lembrou-se dos irmãos, os três pequenos medrosos, como ele gostava de chamá-los. Apenas deles sentiria falta... Mas não podia voltar, não poderia fazer nada por eles. O único jeito era continuar, decidiu. Tenho que ir por aí, até um dia voltar...
- Vamos fazer logo isso – disse Papa-capim, que se levantou e foi procurar o pau que havia arremessado longe. “Vou pensar que ele é um dos cavalos que foi envenenado”, disse consigo mesmo.
- Muito bem – disse Hora H.
Os três se posicionaram em pé, ao redor do homem. Eram como se fossem mosqueteiros com suas espadas e corpos empedernidos, porém sujos. O sol os encandeava.
- Preparados? – todos disseram sim – a gente dá na cabeça, mas tem que ser com força, tá? – disse Cabeção.
- E se não matar com a primeira?
- Aí a gente vai ter que bater de novo.
- Acho melhor só parar quando eu mandar – ordenou Cabeção.
E então, começaram a bater e continuam até hoje...


A Busca

Alguém batia a porta. Ele acordou sobressaltado. Teve medo, mas levantou-se mesmo assim e foi atender quem chamava. O vento zunia do outro lado e com o coração em disparada ele pôs a mão na maçaneta. Ao abrir, a claridade de fora, com seu calor, lhe partiu em milhões de pedaços, como se cada raio do sol fosse uma flecha transpassando-lhe o corpo. Sentiu dor, mas a dor se diluiu na luz, que lhe tomou por completo numa sensação misturada de amor. Acordou ainda com essa sensação, envolvido numa paz esticada além dos limites que conseguia entender.

Uma luz fraca começava a inundar o dormitório. Era o dia, que mesmo sem ter chegado completamente, se fazia anunciar a distância. Sentou-se na cama e passou os olhos no dormitório, nas outras dez camas onde todos ainda ressonavam. Ajoelhou-se para fazer as primeiras orações da manhã e veio-lhe a mente a imagem de seu instrutor, Sr. Tamim, durante a aula da noite anterior, ensinando como a aplacar a solidão e as carências. Queixas de quase todos os aspirantes.
- Deve-se treinar a mente para permanecer constantemente no presente e direcionar toda a atenção no que se está fazendo, falando, pensando e sentindo. Só assim a vida fluirá espontaneamente. Cada um deve ser o que diz, o que faz, o que sente e o que pensa. Concentrem-se nisso e não haverá tempo para solidão ou carências.
Os sacerdotes eram donos dos seus pensamentos, senhores de cada passo, de cada palavra que lhes saia da boca e eram felizes com a sua própria companhia, ao passo que ele, tinha dias que não suportava a solidão. Mas como ser assim, de uma forma espontânea, sem dizer e sentir coisas que podem nos destruir ou a outras pessoas, magoá-las ou feri-las? Sem agir pelo impulso instintivo? Certamente, o Sr. Tamim não falava aos ouvidos do instinto, pensou.
Especialmente as memórias lhe eram traiçoeiras, traziam emoções nas quais ele se debruçava e em pouco tempo estava completamente distraído, envolvido num emaranhado de conjecturas e fantasias, como se parasse a beira de um lago sem conseguir decidir se devia atravessá-lo a nado, molhando intensamente cada parte do seu corpo, vivendo as braçadas, o fôlego e o vazio abaixo dos seus pés ou se pegava o bote e apenas rasgava a superfície, dando um pouco de movimento as águas. No máximo, molhando a ponta dos dedos das mãos ao segurar o remo. “Era preciso concentrar-se e treinar, treinar até quase a exaustão”. Quase ouvia o Sr. Tamim lhe falar.
Levantou-se. Colocou uma velha bata sobre o corpo e saiu do dormitório, foi à área de serviço buscar uma vassoura, um balde com água e sabão, o cesto de lixo e a pá. Havia meses estava encarregado de fazer a faxina do pátio e era seu hábito acordar antes do sol sair completamente, para que cedo, o pátio inteiro já estivesse limpo. Assim, o Mestre, quando estivesse mergulhado em suas meditações, que fazia todas as manhãs num pequeno coreto a céu aberto, na extremidade leste do pátio, poderia desfrutar da mais profunda tranqüilidade, sem os atropelos de uma faxina ao seu redor.

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Bateu nas almofadas e limpou as pilastras. Passou um pano seco no pequeno altar, limpou o incensário e colocou novas velas nos castiçais. Molhou o chão de mármore frio, onde, depois de seco, colocou no centro o pequeno tapete de palha trançada e as almofadas. Quando dava por terminado esta parte da faxina viu o Mestre e dois discípulos saírem pelo portão. Já há algum tempo, devido a problemas de saúde, os médicos haviam recomendado ao Mestre caminhar pelo menos 30 minutos por dia, sem parar. Desde então, de manhã cedinho, era comum vê-lo sair para dar algumas voltas numa praça a duas quadras dali. Normalmente algum discípulo mais chegado fazia questão de acompanhá-lo. Talvez, pensou, esse tempo fosse suficiente para que ele terminasse de limpar o restante da área.
Quando começou a despejar a água com sabão para lavar as lajotas da parte central do jardim, ouviu os primeiros sons na cozinha, era o sinal de que estava atrasado. Apressou-se. Gostava de esfregar lajota por lajota, mas dessa vez não daria tempo, cuidou.
Enquanto esfregava e molhava o chão, lembrou-se do dia em que entrou pelo portão do mosteiro. O senhor Tamim lhe mostrou o jardim e depois o fez sentar num dos bancos, perto da entrada. Um sol morno os aquecia.
Ele queria saber o que era preciso para viver ali e o Sr. Tamim olhou-o detidamente. Passou-se não mais que um instante, mas foi uma fração tão longa...onde os olhos mergulharam nos olhos, falando segredos...mistérios. Palavras incompreensíveis que ele recebia com ardor, um silêncio reverenciado. Já estava preste a dizer que faria qualquer coisa, qualquer coisa, só queria retornar. Para onde? Nem ele sabia dizer, retornar era a única coisa que lhe vinha a mente.
O Sr. Tamim falou que ali se vivia a Iniciação, a consciência plena de si mesmo, a redescoberta da alma...Para chegar a Iniciação era preciso muito trabalho, uma vida reclusa, cheia de abstenções e serviço, sem garantia de nada. Muitos não suportavam e desistiam, cedendo as dúvidas e a desesperança, confusos e céticos a respeito de um futuro que lhes parecia irreal...
Mas ele permaneceria, disse, não pensaria em nada, guiar-se-ia apenas pelos olhos internos que, volta e meia, o visitavam nos sonhos e no reflexo do espelho.
O Sr. Tamim apenas olhava, mas era como se lhe atravessasse os olhos e vislumbrasse alguma paisagem além.
A conversa se estendeu por quase uma hora e ele se despediu decidido. Uma semana depois estava de volta, carregando uma pequena maleta onde estava tudo que lhe pertencia. Foi recebido pelo Sr. Tamim, que o levou ao Mestre. O Mestre o abraçou longamente e lhe falou de amor, um amor tão puro que não conseguiu guardar o sentido, apenas o calor do abraço.
Não deu por conta de que o Mestre já havia retornado, só o viu quando passou por ele, já de roupa trocada e tomado banho, lhe desejando bom dia. Depois, sentou-se numa das almofadas do coreto e acendeu o incenso e as velas. Às vezes, ficava horas em meditação, sempre em jejum, era quando todos procuravam fazer o maior silêncio, para não perturbar suas orações.
Lamentou não ter conseguido terminar completamente a faxina, mas ao menos, faltava a menor parte. Agora, era só apanhar as folhas secas, algumas frutas já amareladas, os gravetos e as flores murchas do jardim. Podia fazer isso silenciosamente.
E assim, caminhando entre papoulas e pés-de-felicidade; carambolas maduras caídas pelo chão e o perfume de pessegueiros em flor, e das roseiras que coloriam o jardim, ele foi se abandonando, esquecendo-se do tempo e deixando-se impregnar pelas plantas. Lembrou e esqueceu, mais uma vez, das palavras do instrutor e do olhar calmo do Mestre ao lhe desejar bom dia.
As sensações foram chegando aos poucos, primeiro os sentidos táteis e olfativos, logo em seguida foi assaltado pelos sons e as visões que desfilaram feito um leque colorido diante de seus olhos. Por fim, viu uma nova dimensão, na verdade não viu, foi um sentido diferente...
Os dedos e palmas das mãos, em contato com as folhas secas e ressequidas que apanhava, ganhavam a mesma textura e se faziam tão secos e ressequidos quanto, às vezes, quase transparentes. Também, sob os pés, percebia os grãos de terra, meio úmidos, talvez por alguma chuva rápida que caíra durante a noite, ou apenas o resultado natural do orvalho de uma madrugada de lua cheia. A umidade molhava seu calcanhar criando um fio elétrico que lhe subia pelas pernas, chegando ao topo da cabeça. Um perfume misturado de terra, com as folhas mortas, com as flores, com o orvalho nas pétalas, nos caules, nas frutas, entrava por sua narina e poros inundando sua mente. O vento que trazia e levava uma suave brisa, brincava na sua testa suada, roçava-lhe os dedos e secava-lhe o lábio.
Abaixou-se, pousando os joelhos, cuidadosamente, sobre a macia pele da terra e a escutou com seu ouvido direito. Fechou os olhos e dos olhos fechados desceram lágrimas. Ouviu as batidas de um coração longínquo, um som quase inaudível, mas que à medida que ele se concentrava mais e mais, seus olhos pareciam ir descendo na mais negra escuridão e o som começava a soar maior, potente, uma verdadeira música. Até que viu, no centro daquela que já era uma retumbante melodia, a alma imensa que governava a tudo.

Um sorriso assomou no seu rosto, ele abriu os olhos, ainda com o rosto rente a pele negra da terra, e era como senti-la respirar. Os poros se mexiam, o imenso corpo pulsava. Olhou para as plantas, se alimentando das seivas da terra para embelezar o dia com inúmeros tons e semitons, dar flores, frutos e sombra. Era o maravilhoso ciclo da natureza onde cabiam animais, plantas, vento, água, fogo, tudo se unia criando um vasto cenário onde a vida se dava, numa interação perfeita, irretocável, tão sublime que dilacerava, tão poderosa que pesava aos olhos. Quis fechá-los por não suportar, mas a luz do sol entrou pelos seus olhos, invadindo a retina de assalto, mergulhando na mente. Falava-lhe na língua secreta da luz. Não eram palavras, era som dentro dos olhos, da mente, do corpo, da carne, por todas as partes, lados, tudo...
Seu peito se abriu numa dor vibrante, uma chama incandescente que tomou todo o coração. Quis falar algo, mas de sua boca nada saia, apenas o êxtase. Estava entre os crisântemos e as rosas e a vontade que teve foi de procurar ver se não tinha danificado nenhum deles. Olhou para as plantas e as tocou como semelhantes, apoiou os pés no chão agradecendo a terra por estar suportando seu peso. Sentiu o ar queimando-lhe os pulmões e reconheceu também mais este como um ser a lhe prover de alimento. Tudo era saboroso.
Apanhou as folhas, os gravetos e as flores murchas, nas mãos, e aquilo eram partes amputadas, mortas, em decomposição, a própria vida em transmutação. Íons, elétrons, prótons, nêutrons, moléculas, átomos, via tudo girando numa metamorfose.
Por todos os lados havia vida, em todos os sentidos, em todas as dimensões, em tudo. Será que o certo não era apenas contemplar tanta beleza? Ficou absorto nessas perguntas e na maravilha de tudo que via, até que alguém chamou pelo seu nome.
Era o Mestre, que o pegou pela mão e o conduziu até o coreto. Teve que se apoiar no Mestre para não cair, pois tudo se movia, tudo respirava e vozes sussurravam ao seu ouvido. Ainda segurando sua mão, o Mestre colocou-o sobre uma das almofadas do coreto e pediu a algum sacerdote que passava que lhe trouxesse um copo d’água.
Olhou para trás e viu as pegadas negras, sujas de terra, que deixou no mármore branco.
- Não se preocupe com isso, falou o Mestre que o fez beber toda a água do copo e depois, segurando as suas mãos, pediu que respirasse profundamente e devagar.
Sentia o fluxo de energia vinda do Mestre que começou a atuar nele desacelerando seus batimentos cardíacos. Pouco a pouco, o rosto que estava vermelho foi retornando a tez natural. Os sons ao seu redor foram se distanciando, as cores voltaram ao normal e toda a vida que ele vira saltar diante de seus olhos, novamente se escondeu por trás do véu da realidade.
O Mestre então lhe falou:
- Estás melhor?
- Sim Mestre – uma voz fininha respondeu a pergunta. – Mas...o que aconteceu?
- Foi um vislumbre. A realidade que tu vives hoje, é a realidade dos aprendizados preparatórios para tua Iniciação, onde podes vir a ter vislumbres de planos superiores.
- Então foi isso? Outros planos, mas parecia tudo tão presente.
- Tudo existe simultaneamente, mas tua verdade ainda é aquela que está ao alcance de tuas mãos e não deves te deixar seduzir por essas visões.
- Eu não entendo, Mestre, porque me foi dado ver se não devo vivê-las?
- Às vezes, o céu nos presenteia com bênçãos para que nós possamos experimentar o que nos aguarda, como um pequeno gostinho, para nos incentivar a um esforço maior. Nossa personalidade, muitas vezes, precisa ser tentada com algo que para ela tem maior valor, para que se sinta segura e deseje partir do lugar onde está. A abertura dessa porta é um momento muito delicado e também perigoso.
- Perigoso...?
- Sim. Sei que não provocaste nada que aconteceu, foi-te apenas oferecida uma pequena parte do sabor de uma descoberta. Mas essa descoberta, como um todo, só se revelará no seu devido tempo, quando estiveres maduro o suficiente para aceitá-la sem quereres rejeitar o mundo onde tu realmente habitas e deves criar.
Como assim, Mestre?!
- Entende, o desejo da alma de voltar aos planos superiores, aos quais pertence, é muito grande e ao terem essas visões ela pode não resistir e cair, perdendo o elo com a realidade.
- Cair? Mas tudo que eu vi é tão real e torna tudo aqui tão ilusório e abstrato...porque seria cair desejar voltar a Deus?
- Tu queres te unir a Deus, não queres te apartar jamais D’Ele, eu sei, e talvez tenha sido esse desejo, de ser apenas o que se é, que tenha te proporcionado tamanha experiência. O Pai nos chama todos os dias, a todo instante, para que não nos esqueçamos quem somos, para que possamos fazer o que viemos e prometemos que iríamos fazer aqui e, para isso, é preciso que não te percas nessa união. Porque se te perderes, serás um, com a força que a tudo penetra, mas não poderás ser um dos braços do Criador a intervir e ajudar a onde os que vivem têm seus olhos obscurecidos. Não te enganes, toda a vida que tu vistes pululando, vibrante, coopta com está realidade palpável que tu podes ver com teus olhos da carne para que possamos crescer, criar e viver cotidianamente a presença divina em tudo. Os pássaros voam, as árvores crescem e dão fruto, as crianças se tornam homens e descobrem verdades maiores a cada dia. Ainda que tudo se dissolva, tudo realmente desapareça, há algo que permanece e é esse algo que cria a verdade nesta realidade. A ilusão é o cenário aonde se dá a verdade. Por isso, deves te apegar a esta ilusão, como a única tábua de salvação para alcançar o oásis. Quando chegares lá, podes largar a tábua, não morrerás mais afogado.
Dito isto, o Mestre beijou a sua fronte e lhe falou ao ouvido.
- Trabalha pacientemente, arduamente, para que não seja necessário que te chamem a atenção no futuro. Constrói teu caminho com zelo e cuidado, prestando atenção a cada pequeno detalhe, mas sem deixar escapar as grandes paisagens. No final do percurso, te perguntarão como foi a viajem.
O Mestre se levantou e saiu. Ele permaneceu ali por algum tempo. Olhou para o nada, o nada que envolvia todo o espaço entre as coisas. Lembrou-se do ar vivo lhe queimando os pulmões e pensou no caminho longo que ainda teria que percorrer. Fechou os olhos e tentou guardar dentro de seu coração tudo que sentira, vira e ouvira, mas depois se levantou e limpou as pegadas que seus pés tinham deixado no assoalho branco.



Instinto social

A Polícia investiga a morte de 17 animais e o desaparecimento de outros três. Os casos ocorreram no prazo de uma semana. Dez cavalos foram queimados, degolados e atirados de um viaduto de 50 metros de altura. Os corpos foram encontrados num local de difícil acesso. Noutro dia, mais sete animais apareceram mortos, envenenados. Em comum, nas duas situações, a suspeita de que os mandantes dos crimes sejam pessoas descontentes com os catadores de reciclados, donos da maioria dos cavalos. As mortes dos cavalos, agora, representam um problema social no Porto do Capim.
Entre os prejudicados, está Maria Carminha Correia, de 55 anos, que perdeu cinco dos sete cavalos que possuía. Ela criava animais há oito anos e agora desistiu do trabalho de reciclagem. Já vendeu a carroça.
- Quem faz isso não tem coração. Os animais não conseguem se defender. Era o meu ganha-pão. Agora, sem eles não tenho como trabalhar.
Com o ocorrido, uma outra catadora, Georgina da Silva, enlouqueceu ao ver seus animais envenenados. A mulher preferiu matar todos os bichos. Não suportou o sofrimento.
Segundo os catadores, um homem já teria ameaçado matar outros cavalos. Com a venda de matérias reciclados as mulheres conseguiam o apurado de R$ 50 reais por semana...

Joana desligou a televisão e pensou: “Que tipo de pessoa faria algo tão cruel? O mundo está perdido”. Lembrou-se do filho, e seu coração se apertou, não sabia como defendê-lo do mundo. Resolveu ir até o quarto do rapaz.
- Você ouviu?
- Ouviu o quê mãe?
- Essa história dos cavalos mortos.
- Não, não ouvi – disse o rapaz, seco.
Ela ficou em silêncio, olhando-o colocar algumas roupas numa mochila. Enquanto Joana olhava constatava o quanto ele havia crescido. O rapaz era um jovem forte, musculoso, tinha 18 anos e o vigor que ela considera que o tornava mais belo ainda.
- Você vai dormir fora?
- Não. A senhora está perguntando isso por causa das roupas?
Joana confirmou.
– Isso é só para trocar de roupa depois do treino... mas eu vou voltar tarde, é melhor a senhora não me esperar.
- Você vai sair com quem?
- Com os meninos.
- Não gosto desses teus colegas, preferia que você se afastasse deles...
- Não vai começar de novo, né, mãe?!
- Ok, ok, não vou implicar. Mas vê se não volta muito tarde, sabe como teu pai fica abusado em ter que abrir a porta para você.
- Eu já tou tão grandinho, você não acha que daria para eu ter uma chave só para mim?
- Acho sim, e por mim teria, mas teu pai é assim, melhor não contrariar. Um dia ele vai acabar cedendo, Edu. Mas tenha paciência...
Ele continuou se arrumando, colocou desodorante, perfume e se olhou no espelho. A mãe o observava em silêncio.
- A senhora quer falar mais alguma coisa? – perguntou, estranhando o silêncio.
- Não. Estou apenas admirando como você cresceu e está bonito.
Ele sorriu vaidoso e fez pose, mostrando os músculos para o espelho.
- Bem, acho que vou para o quarto. Boa noite meu filho e vai com Deus, tá!? Cuidado com o mundo e presta atenção naquele teu amigo, o Tony, acho que ele não é boa companhia.
- Mãe...
Ela não deu atenção a interjeição do filho, lhe deu um beijo na cabeça e saiu.

Eduardo ficou sozinho, sentou na cama por um instante e lembrou do mendigo deitado na frente de casa. Assim que chegou, mandou ele sair. O homem foi claudicando, cheio de latas e bugigangas, para debaixo de uma árvore. O mau cheiro ficou no portão.
A lembrança da cena fez a raiva subir novamente à cabeça. Já havia expulsado o homem uma vez, mas agora ia ser mais enérgico. Pegou um bastão que usava para lutar e saiu, tinha combinado encontrar-se com os amigos na frente de casa.
Assim que entrou no carro fez a proposta.
- Vocês viram o mendigo deitado em baixo daquela árvore?
- Vi, é aquele mesmo que você tentou pegar outro dia, não é? – perguntou um dos rapazes.
O carro estava lotado. Todos eram jovens e tinham entre 16 e 18 anos.
- O mesmo. Queria saber se vocês topam a gente dar um surra nele.
- Não acha um pouco arriscado fazer isso aqui na frente da tua casa?
- Não, para mim não tem problema – garantiu – é só esperar até mais tarde. Já falei com o vigia para sumir depois de meia noite e só voltar lá para as 3h. Acho que deve dar para resolver.
- Se você acha que não tem problema eu topo – disse o rapaz que estava dirigindo, um jovem loiro e bonito, mas com os olhos permanentemente esgazeados.
- Eu topo – disseram alguns.
- A gente ta contigo Edu. Esses mendigos deviam virar sabão.
Todos riram com o comentário de Tony.
- Então, está combinado – disse Edu, ainda rindo com o que o amigo disse.
- Vocês estão rindo de quê, eu falei sério.
- É exatamente por isso – avisou um dos rapazes.

O silêncio era completo quando o carro, um gol preto, parou em frente ao mendigo que dormia debaixo de um Flamboyant sonolento, carregado de flores vermelhas. Os cinco rapazes foram rápidos. Encapuzaram e amordaçaram o homem, o arrastaram até um terreno baldio próximo, ainda na mesma rua, e lhe encheram de socos, pontapés, pauladas. Bateram e bateram exercitando a fúria, o ódio de pobres, negros, bichas e sapatões. Quebraram os pertences do mendigo e jogaram longe. Cuspiram e mijaram no corpo desacordado, depois saíram. Foram tomar cerveja.
- Porra, fiquei excitado – disse Tony no banco de trás do carro, tirando o pênis da calça.
- Caralho, porra, cara! Coloca isso pra dentro. Edu, ele tá mesmo de pau duro – contou o loiro esgazeado, que sentara no banco de trás e não suportava o jeito louco do amigo.
- Tony, cara, porra! Isso aí já é doença...- gritou Edu, irritado.
O rapaz obedeceu, mas molhou a cueca, silenciosamente, com uma mistura de urina e esperma.
O carro seguiu e eles foram repassando outros momentos em que Tony também ficara excitado, justamente para provar que havia algo de errado no comportamento. Mas, ao invés disso, só conseguiram aumentar a ansiedade e a adrenalina do rapaz que se movimentava feito um azougue.
A conversa aportou em uma semana atrás, quando eles saíram assaltando algumas domésticas nas ruas desertas de um bairro chique da cidade. Também lembraram de outra vez quando passaram com o carro próximo as paradas dos ônibus com Tony dando safanões em quem estava mais próximo do meio fio. Colecionaram várias reações hilárias naquele dia. Normalmente eram gritos, palavrões, alguns caiam no choro, outros ficavam desnorteados.
- Tem cara que até agora está tentando entender o que o atingiu – riu Tony.
Eles não conseguiram manter a discussão. Cederam ao humor do amigo e riram todos juntos enquanto o carro, descendo a avenida, rasgava o silêncio da cidade. E os risos caiam no asfalto, subiam pelos postes e assombravam os poucos que se arriscavam pela noite. Não era um riso comum, não era estridente, não era engraçado. Mas havia algo de metálico nele, como se não fosse real.



A Mulher

Eu vinha atravessando as horas, as manhãs, tardes, noites, madrugas e dias, olhando para uma paisagem internar com tantos movimentos e reboliços que eu mal conseguia respirar.
A minha rotina era acordar às seis, contanto que a insônia não me despertasse antes, caminhar durante uma hora, ou correr, para chegar em casa completamente exausto e suado, tomar banho, fazer um pouco de yoga e sair sem tomar café. Pegava o ônibus perto de casa e saltava na praça. Chegava sempre dez a quinze minutos atrasado no trabalho.
Eu “vendia” programas voltados exclusivamente para área contábil, que obrigavam as pessoas que o adquirissem a manter um contrato de suporte técnico de pelo menos um ano. Na verdade, as pessoas acreditavam que algum dia poderiam se ver livre do suporte, mas isso não era possível, porque as dúvidas eram muitas, o programa vasto, as atualizações constantes e o treinamento dado aos clientes superficial.
Mas os clientes ficavam encantados com as possibilidades do programa e não atentavam para a realidade que era proposta: manter indefinidamente o ônus de um suporte técnico, o que alguns chegaram a chamar de “sociedade nos lucros”. Quando atinavam para isso, rendiam-se como sendo algo inevitável. E se não tinham essa visão ou experiência, acreditavam que com o tempo conseguiriam se manter sozinhos, achavam que um ano seria o suficiente para entenderem e conseguirem utilizar o programa com tranqüilidade. Ninguém conseguia.
São os avanços da modernidade. O sujeito compra um programa, ou o direito de usá-lo, e além disso, é obrigado a sustentar alguns marmanjos, eu incluído. Porque apesar do programa se dizer auto explicativo a explicação não facilita nada, e exige muito estudo, prática e tempo para entendê-la, o que acaba não sendo viável. Mas ninguém dizia isso. É claro.
Como já disse, eu não vendia nada, então, na maior parte do tempo eu lia, lia, lia, brincava de paciência no computador, ou outro jogo. Estudava, estudava, estudava e assim se passava o dia. O outro cara, encarregado do suporte técnico, era um bronco. Não tolerava quem lhe chamasse a atenção, quem lembrasse alguma coisa, não gostava de falar o que estava fazendo, onde estava indo, se voltava, se ia demorar, não gostava de porquês, ondes, quandos nem comos. Tinha um humor irritadiço e bem ciclotímico. Quando estava só, invariavelmente, ficava catando sites de sexo na internet, capturando imagens de filmes explícitos e sabe-se lá o que mais com aquela webcam instalada. A convivência era difícil, no princípio quase impossível. Ele não me aturava. Tinha medo que eu invadisse seu espaço na empresa e lhe abocanhasse uma parte do salário. Eu realmente queria crescer, mas achava que tinha espaço para todos. As coisas acabaram tomando rumos bem diferentes.
Bom, no final das contas era eu, ele e três sócios, que apenas de vez em quando apareciam por lá, pois cada um tinha seu escritório próprio e era de onde realmente tiravam seu ganha pão. Eu abria e, às vezes, fechava a empresa. Passava a maior parte do tempo sozinho. Ia para casa às 18h, jantava e tinha aula às 20h, onze e meia ou meia noite estava dormindo, para no dia seguinte começar tudo de novo.
Foi num desses dias, aparentemente normal, cheio da mesma rotina dos dias que o haviam antecedido, aparentemente com a mesma tez, o mesmo cheiro, os olhos cansados e a timidez. Era um dia que apenas começava a se anunciar, mas que me brindou com a ternura de uma visão nova, foi quando eu a vi pela primeira vez, era março.
Não sou desses que olha em demasia para as mulheres que passam, admiro a beleza delas, mas ando tanto com os olhos voltados para dentro de mim, que essa beleza me escapa. Já me disseram que com essa atitude deixo de ver muita coisa, principalmente os olhos que me vêem e buscam, às vezes, até ansiosamente, sem encontrar resposta.
Eu estava indo para o trabalho, quando na fila de descida do ônibus ela se colocou na minha frente. O cheiro do cabelo molhado me chamou a atenção. Ela o tinha enrolado ainda úmido e prendido num coque com uma daquelas varetinhas, do tipo que os orientais usam como talher. Do cheiro do cabelo eu pousei os olhos na nuca, na pele branca e nos escassos pelos claros que se misturavam com os cabelos. Ela desceu na minha frente e quando saiu do ônibus, após alguns passos, soltou o cabelo, que caiu deliciosamente sobre os ombros, infelizmente cobrindo a nuca. Tinha um corpo maduro, mas ainda cheio de curvas. Eu olhei as suas pernas, escondidas dentro da calça, as ancas firmes e ligeiramente arredondadas. Não era alta, mas com passos fortes avançava ligeiramente na calçada. O sapato fechado, com um pequeno salto, não deixava ver os pés.
Ela virou-se para atravessar a rua e me viu, nos olhamos. Tirei o olhar, para não ser inconveniente, e atravessei primeiro, fui na frente. Só quando já estava há uma boa distância olhei para trás, uma, duas, três, quatro vezes. Transtornado, perdi o jeito, fiquei sem saber onde colocar os pés, as mãos, a cara, acabei cometendo gestos largos, talvez na esperança de chamar alguma atenção pelo alvoroço. Foi a ansiedade, já que pra mim alvoroço não é nenhum bom cartão de visitas.
Daí em diante a percebi todos os dias, descobri onde ela pegava o ônibus – três paradas depois de mim, e me colocava, invariavelmente, atrás dela quando ia descer. A acompanhei até onde trabalhava, numa faculdade ali perto. Procurei me fazer notado e esperei que me desse algum sinal, mas para ela eu parecia não existir. E isso era um péssimo sinal. Eu, que tantos disseram ser observado, passei a observador e, queria Deus, que justo o objeto que eu escolhi era tão distraído quanto eu. Pelo menos foi isso que eu preferi acreditar.
Pensei que talvez ela me achasse muito novo. Eu não disse? Ela era balzaquiana. Via-se na determinação do olhar que havia muita experiência ali. Eu com meu rosto de vinte e dois – já chegaram a me dar dezessete – com uma estatura pra lá de média e um jeito entre colegial e Office boy. Não devia chamar nenhuma atenção. Mas... pensei, talvez se me aproximar, quem sabe, ela verá melhor quem sou e se interessará. Atrás dos olhos não tem idade, tem fogo que chega a faiscar quando apaixonado. Arde até de olhos fechados. Preso ao rigor mortis, ou dissolvido pelo chão, em terra, em cinzas, mesmo assim ainda queima, misturado as centelhas derramadas pelo sol. Acho que estou apaixonado. Vou tentar! Chega de fantasia!
...Mas passei um mês inteiro para arrumar coragem.
Eu nunca tinha abordado nenhuma mulher na rua, melhor, em lugar nenhum. A minha única relação foi com uma amiga de infância, que pulou naturalmente para a intimidade e durou três desastrosos anos, até nenhum dos dois se agüentar mais. Depois disso, não tentei mais nada, até queria, mas acho que estava ferido demais, irritado, magoado, um amontoado de tolices que agora nem valem a pena enumerar.
Pensei. A melhor forma de me aproximar era uma cantada. Passei dias pensando numa, que não fosse acintosa, nem muito picante, mas também não podia ser fria. Tinha que falar do que eu via, que era físico, o cheiro, a pele, a beleza, sem ser sexual, mesmo que ainda fosse um estágio químico...
Acho que meu linguajar é muito técnico.
Fiquei testando no espelho.
Tentei todos tipos de expressões, desde as mais chulas, as divertidas, as sérias, apaixonadas, quentes, inteligentes, eu tinha que encontrar a que melhor se encaixava em mim. Fiz uma coleção. Anotei tudo o que eu via, ouvia e cheguei até a pesquisar, ver alguns filmes. Foi um trabalho obsessivo. Imaginem, eu sozinho no meu trabalho, fingindo um primeiro encontro.
- olá...teu nome é Cristina?
- Você anda sempre por aqui?
- Eu não pude deixar de notar que nós moramos no mesmo bairro, pegamos o mesmo ônibus todos os dias e no mesmo horário, descemos no mesmo local. Para mim, tudo isso só pode ser algum sinal do destino.
- Faz tanto tempo que eu espero te encontrar. Eu me atrasei um pouco, eu sei, mas estou aqui. Você quer começar por onde.
- Eu tenho inveja dos sapatos que calçam esses pés.
- Eu não te garanto a felicidade, mas pelos menos um pedacinho do paraíso toda noite.
- Sei que isso é meio batido, mas acho que fomos feitos um para um outro.
- Faz alguns dias que te vejo e meus dias já não são mais os mesmos.
- A química que você produz em mim parece a revolução da tabela periódica.
- Imagina um coco numa ladeira. Rola ou não rola?
- Posso te dar uma cantada?

Chegou o dia. Respirei fundo e esperei-a aparecer. Ela surgiu na parada num vestido que ia até um pouco abaixo do joelho. Era branca com um decote que deixava as costas sardentas à mostra. Sapatos fechados com um leve salto que lhe empinava o corpo e os seios para frente. O cabelo ainda molhado, como na maioria das vezes, estava amarrado num coque e o perfume inundou o ônibus quando entrou. Fiz o ritual de sempre, mas quando descemos do ônibus me posicionei logo atrás dela. A abordei.
- Será que eu te conheço de algum lugar? – se ela dissesse que nos vemos sempre no ônibus já seria um bom sinal. Mas ela não disse. Olhou-me de ponta a cabeça e respondeu seca:
- Eu sou casada.
Fiquei sem ação. Pensei em várias saídas. Depois pensei que poderia ter dito que não me importava, mas isso não me ocorreu. Ao invés disso, fiquei com vergonha de tentar uma beldade que parecia tão bem casada.
- Desculpe-me – disse, pensando se era verdade que não existem mulheres fiéis, apenas mal cantadas. Talvez ela não me quisesse, apenas. Diminui o ritmo e deixei que ela avançasse. Lá se ia distanciando o objeto do meu desejo e que foi capaz de me fazer esquecer, por quase um mês, de uma rotina torturante e vazia. Era ela a musa das manhãs e das tardes. Agora não havia mais cor. Voltei ao cinza das intermináveis horas, manhãs, tardes, noites, madrugas e dias. Sentei-me num banco e ainda espiei para ver quando ela desapareceu na esquina que daria para a faculdade onde trabalhava. E eu voltei para a minha paisagem internar, aquela que mal me deixava respirar.



A invasão

Tonho viu quando o cometa caiu perto da sua casa. O estrondo o assustou, mas aquela curiosidade inerente a raça fez com que deixasse o cômodo estado de observador e resolvesse caminhar em direção ao objeto. Queria ver de perto. Tentou ligar para a esposa, mas o celular não dava sinal. Porra! Preciso trocar de operadora.
Tonho morava na zona rural de uma cidade cujo principal ponto turístico era uma estátua de um padre encravada no mirante mais alto do município. Além disso, a cidade era conhecida por suas inúmeras aparições de discos voadores e reuniões de estudiosos dos UFOS. Foi lembrando dessas coisas que o rapaz chegou no local do meteoro e viu que a pedra, na queda, tinha feito uma vala de cerca de 200 metros de cumprimento, por três de largura. O chão ainda estava quente.
Talvez eu consiga algum dinheiro com essa descoberta, pensou.
Apesar da fama por conta dos discos voadores, ninguém nunca tinha encontrado um meteoro na cidade. Tonho lembrou da história do Super-Homem, adorava o seriado e o filme. O homem de aço chegou na terra daquela forma. Por um instante passou pela sua mente a vida dupla de Clark Kent, as grandes atrações, preocupações e cuidados de uma vida como a do personagem. Pensou que algo assim bem que poderia acontecer com ele. A idéia fez com que um frenesi lhe tomasse a cabeça. Viu a pedra ao longe banhada por uma luz esverdeada, a mesma cor da criptonita. Parou. O coração agora estava acelerado, pensou se não era melhor esperar por alguém. Afinal, ninguém sabia que ele estava ali. E se desaparecesse? E se esse meteoro tivesse algum vírus alienígena? Agora sua cabeça passeou pelos inúmeros filmes de terror, as historias de invasão e catástrofes planetárias. Titubeou. Foi aí que começou a ouvir uma música saindo da rocha, reconheceu a batida.
Era forró eletrônico.
Aquilo o apavorou. Resolveu dar meia volta, mas suas pernas não obedeceram. Tentou de novo e agora via que não tinha nenhum controle sobre o corpo. Aos poucos, levado pela melodia, começou a dançar de uma forma canhestra e sensual, mexia com a pélvis, passava as mãos entre as pernas, entre as nádegas, enfiava os dedos na boca. Foi dançando assim que tirou a roupa e ficou nu, enquanto um pavor crescente lhe tomava. Queria gritar, mas da sua boca não saia nada. Dançando e rebolando freneticamente foi caminhando em direção a rocha e a agarrou. Ali a música estava alta, o coração a mil. Agarrado de forma involuntária a pedra, que estranhamente estava gelada, foi tomado por um banho de luz verde.
No dia seguinte o rapaz acordou extremamente bem disposto, e nu, ao lado da mulher. Deu beijos nela, que ainda estava sonolenta.
- Ei, que disposição.
Os dois treparam como há muito tempo não faziam. Ele estava intensamente alegre.
No café da manhã ela reclamou do que considerou uma displicência perigosa.
- Você adormeceu deixando a casa toda aberta.
- Foi? Nem me lembro.
- Tudo bem que a gente mora no fim do mundo, mas é melhor não facilitar.
Ele ficou calado. Cantarolava uma música insistentemente. O som a fez mudar o rumo da conversa.
- Que música é essa? É bonita.
- É. Também acho, me veio desde que acordei... – disse ele entusiasmado.
- Acho que você devia mostrar para os outros da banda.
- É isso que vou fazer.
No meio do caminho para o trabalho Tonho ligou para Careca e Dimbo, seus colegas da banda ‘Lingüiça na Calcinha’. Disse que precisavam se encontrar no final da tarde. Ele tinha uma música que queria mostrar urgentemente.
No trabalho, o rapaz não se conteve e cantarolava enquanto criava a letra. Algo como:
‘Bate, come, volta, mete mais um pouco, enrola no pescoço. Senta e rebola no caroço. Tome, arreganhe, chupe o queijo todo. Não deixe que o leite fique lá nas bolas, meta nos ouvidos, derreta seu juízo. Pire lá no friso”.
Não demorou muito para que todos da concessionária – era onde o moço trabalhava – começassem a assoviar o hit. À noite, na casa de Careca, Tonho mostrou a melodia. Já com os trechos que tinha inventado. Os três ficaram entusiasmados. Em pouco tempo a música e a letra completa havia nascido. Ficaram pensando no título. Queriam algo novo, por isso resolveram entrar na internet para pesquisar o que havia. Os títulos que surgiram iam de Zé Priquito, Chefe do puteiro, Mulher roleira, Dinheiro na mão, calcinha no chão a Abre as pernas e dê uma sentadinha, mas a lista era grande. Tonho disse que era contra títulos muito explícitos, na opinião dele esse formato já estava cansando. Optaram por ‘Findo Juízo’ que dava um bom duplo sentido. Gravaram a música e Careca ficou de deixá-la, naquela noite mesmo, junto com alguns amigos de uma rádio que conhecia e que tinham também acesso com a capital.

No dia seguinte, a esposa de Tonho teve um sonho estranho. Ela estava deitada numa pedra verde e um homenzinho metia a mão dentro de sua cabeça. A partir daí tudo ficava feliz e colorido, ela não sentia mais dor, só contentamento.
Acordou com o marido chamando-a para ouvir a música na rádio. Uma sensação de euforia tomou conta dos dois. Sabiam que seria um tremendo sucesso. Eles se beijaram e Tonho a quis ali mesmo na sala, mas nessa hora o telefone tocou. Era Careca e Dimbo. Uma gravadora do Rio tinha entrado em contato com eles e queriam lançar a música em todo o Nordeste. Ela iria adiantar uma grana para que pudessem montar o show, mas tudo era para ontem. O primeiro show seria em três dias. O alvoroço foi imediato. Logo chamaram alguns dançarinos para montar a coreografia. Todos sabiam que era impensado que uma banda não apresentasse uma dança de destaque para sua música carro-chefe. Deviam ser passinhos fáceis para serem repetidos a exaustão por milhares de pessoas. Num acesso quase involuntário, que provocou um acesso de riso nos presentes, Tonho fez questão de mostrar alguns gestos que tinha na cabeça, mas a dança, cheia de gestos tresloucados, que misturava sensualidade com uma espécie de ataque epiléptico, acabou valendo e foi adotada pela turma.
O astral era o melhor possível, todos demonstravam bom humor. Havia uma alegria constante nos músicos, nos dançarinos (homens e mulheres) nos familiares. A música provocava isso, um estado de bem estar que era quase um êxtase religioso. Ela também provocava uma espécie de dependência, com todos os sintomas das crises de abstinências. Mas ninguém se deu conta disso. Afinal, a alegria era geral.
O sucesso foi rápido e com o primeiro show vieram outros. A coreografia abusada da banda ‘Lingüiça na Calcinha’ acabou sendo imitada com facilidade pelas pessoas que chegaram a criar algumas diferenças para homens e mulheres. Com o tempo, foram se sendo agregando outros elementos, de danças de outras bandas, como a simulação do sexo com uma garrafa, movimentos pélvicos mais ainda exagerados. Em alguns shows era feita uma cena inusitada, onde parte do público ficava abaixado simulando uma minhoca fornicando.
A banda não parava mais de fazer apresentações e em pouco tempo a música tomou o Brasil por completo, estava nas boates, nas novelas, nas salas de bate papo pela internet, nas universidades, entre os políticos, em todas as rádios, nos vários programas de televisão. Tonho, Dimbo e Careca ficaram ricos, sempre com um bom humor a toda prova. A melodia foi traduzida para o espanhol e invadiu a América Latina. Chegou nos Estados Unidos e abocanhou o país, levando a uma espécie de convulsão social, daí até alcançar o resto do mundo foi fácil. Em menos de um mês não havia outra música sendo tocada. O mundo estava viciado e os próprios ouvintes faziam questão de submeterem os mais resistentes e reticentes ao som, repetido-o até fazerem deles outros seres felizes.
O sentimento de contentamento agora era constante. Todos os chefes se uniram em paz. Foi decretado o fim das guerras ao som do hit eletrônico. Para comemorar a façanha mundial um grande show ficou programado, todo regado a várias versões da música cantada pelo mundo. No palco, erguido na Times Square, a ‘Lingüiça na Calcinha’ iria tocar.
Quem diria, pensou Tonho, do meio do mato para Nova Iorque, e ao pensar nisso reviu, por uma fração de segundos, o clarão verde. Uma sensação estranha lhe tomou a mente. A alegria estonteante que o tomara desde o início da aventura desapareceu. Careca e Dimbo o chamaram, era hora do show. Tonho se levantou e com ele um zunido na cabeça, uma tonelada em cada pé e uma sensação de desfalecimento. Chegou até a bateria e desmaiou. A cena causou uma certa demora no início do evento. Mas rapidamente trocaram o baterista. Mesmo assim Careca quis saber como o amigo estava. Tudo bem, disseram. Foi só uma alta súbita de pressão.
O show começou e o mundo parou para ouvir. Estavam juntos terroristas, empresários, banqueiros, alta sociedade, pedintes, políticos, presidentes, a realeza, prostitutas, professores, jovens, crianças, idosos. Todos. O show começou, ao mesmo tempo, retransmitido e reeditado em todas as partes do globo. A onda sonora criada pela musicam, simultaneamente tocada em vários pontos do planeta, gerou uma euforia incontrolável na população, uma espécie de histeria. Alguém colocou a música no repeat, nos auto-falantes, nas televisões, nas rádios, nos carros. Ela não parava e, em questão de minutos, todos estavam nus. Não havia quem não tinha se despido, tirado jóias, próteses de ouro, perucas, todo tipo de pertence. Era como a imagem de uma imensa câmara a céu aberto, com o mundo em convulsão. Depois de uma hora todos estavam mortos.
A massa cinzenta se liquefez e escorreu para fora do corpo pelo ouvido, deixando pequenas poças ao lado de cada corpo. Pouco tempo depois naves alienígenas estacionaram no céu. Desligaram a música e recolheram os corpos deitados no chão, nus, mas ainda com um sorriso idiotizado estampado na cara.



Mentu e EU

Eu seguro a minha própria mão, abro e fecho os olhos. Aperto mão contra mão. Consolo-me. Conforto-me. Abro e fecho os olhos como se quisesse ver além e pegar o tempo desprevenido. Quero olhar numa dobra qualquer do espaço e ver o mundo real construindo a ilusão que existe. É a ilusão que eu vejo, que eu pego e que me é familiar. Penso que o mundo pode ser obra da imaginação de algum artista gráfico e somos apenas um esboço, uma história limitada pelo papel na prancheta.
A minha mãe. Desde que eu me entendo por gente a chamo de mãe. Nunca havia parado para pensar. Será que ela é minha mãe de fato? Ela é tão diferente de mim... pensamos e agimos de formas muito diferentes. Será que não é uma atriz que ao virar o cenário vai falar com o diretor da peça? Às vezes fico querendo perceber a virada da página, o momento do intervalo, ou fico em profundo silêncio esperando para ouvir as pessoas no teatro olhando para mim. Será que estou no papel correto? Sei que vocês devem estar esperando que eu faça alguma coisa, mas eu não sei o que é...

– Acorda, acorda... Tá na hora de ir para a escola.
- Ahn? Quero dormir mais um pouco.
- Eu não vou chamar de novo. Acorda!
- Deixa eu ficar dormindo?!
- Não! Levanta! – grita.
Jonas faz um esboço de movimento. A mãe sai do quarto. O menino se levanta ainda meio dormindo, pega a roupa da escola em cima de uma cadeira. Abre a porta. A claridade do dia o incomoda, ele coloca a mão para proteger os olhos e assim, meio sonolento, vai em direção ao banheiro, liga a torneira. A água escorre pela pia, saindo da torneira, rodopia e desce continuamente pelo ralo. Jonas escova os dentes. Olha para o espelho, olha nos próprios olhos, perscrutando.

Às vezes parece que eu vejo alguém do outro lado. Mas nem sempre ele está. Às vezes eu o vejo de relance. Parece que ele passa e não me vê. Outras vezes eu quase posso jurar que não sou eu que olho pra mim.

Jonas sai do banheiro arrumado para ir ao colégio e vê que não é mais dia. O céu está estrelado. Ele corre até a varanda do apartamento e olha a noite. Volta até o banheiro, como se estivesse procurando algo. ‘Mas era dia ainda agora...’, ele diz para si mesmo. Olha para o relógio: 2h30. Vai até o quarto da mãe. Ela dorme. ‘Será que enlouqueci?’, pensa. ‘Será que foi uma ilusão? Eu estava dormindo...’. Ele fica assustado com o grau de sonambulismo, mas volta ao quarto. Essa resposta o tranqüilizou um pouco mais. Ele estava dormindo.

Ele está só de calção de banho, próximo a uma piscina. Ele olha para cima, para o céu.

Às vezes acho que sou observado, parece que alguém me vê de fora. Não é como se me vigiasse, apenas me observa. Esse que me observa não está só fora, também me olha por dentro.
É alguém que vê o mundo que me cerca, mas ao mesmo tempo vai me levando ao limite da agonia e quer uma resposta para uma pergunta que eu não consigo entender qual é.

Ele mergulha na piscina e começa a nadar de um lado para o outro.

Um dia desses pensei como seria se eu não fosse vivo. Acredito que tudo só existe porque eu estou vivo. Pelo menos para mim o mundo não tem sentido sem a minha presença.

- Ei, Jonas, você não pode ficar assim. Você vai perder o acampamento, é a nossa oportunidade de sair do zero. A Carol, a Ângela, a Cristina, Luana, todas as gatas da escola vão estar lá. E além do mais, você não pode deixar o teu amigo sozinho nessa.
Jonas está deitado na cama, com um lenço na mão que de vez em quando usa para assoar o nariz. Escuta impassível o amigo.
- Pensa só. Praia, sol, barracas, areia, sem pais por perto e muitas garotas...deitadas na areia...tomando banho, naqueles biquínis apertadinhos. Vai ficando de tarde, alguns saem para dar uma caminhada, outros ficam por ali mesmo. Nada pra fazer, só ficar se olhando, jogando conversa fora. Vai ficando de noite com aquele cheiro de mar, vai dando aquela coisa na cabeça, o tédio e a maresia, uma moleza. VAI DAR! Tem tudo pra rolar. E se a gente não tomar conta os outros meninos vão dar em cima. O Hernane já disse que vai fazer marcação cerrada, e aquele garoto é tão chato que as meninas são capazes de dar prá gente só para se ver livre dele. Mas se eu for sozinho...você sabe que eu sozinho sou uma merda. Cara, você tem que melhorar. A gente faz um time, um ajuda o outro e...
– Por que você não chama o Guto?
– Por que o Guto é um molenga, e nem estuda mais no colégio.
– Até parece que eu sou um grande paquerador.
– Mas eu não estou dizendo isso. Você tem que entender que essa é a nossa chance de sair do zero – diz isso fazendo um gesto obsceno e ao mesmo tempo engraçado que faz Jonas cair na risada, que no final se torna uma mistura de riso e tosse.
– Ai, não dá pra rir. Mas daqui pra amanhã não vai dá, e se eu for assim, com essa gripe, aí que ninguém vai querer se aproximar de mim. Não é não?! Chama o Guto, ele é legal e já tem namorada, não vai dar em cima de ninguém.
– Tem certeza que isso é gripe? Tua mãe diz que é depressão.
– Mãe não sabe de nada – diz chateado e tosse mais um pouco – é melhor você ir senão vai acabar pegando esse vírus e aí quero ver você ficar no sol o dia todo.
– Você não ia me deixar na mão, nê?
– Ah, Felipe – diz irritado – tchau – fala isso e começa a se arrumar para dormir.
– Eu vou ver se o Guto topa ir, acho que é melhor ele do que ninguém.
– Tchau Felipe, tô com sono. Ah, abre a janela pra mim?
Felipe abre a janela e sai. Jonas fica sozinho. Gira de um lado para o outro, passa a mão na cabeça. Bufa e senta num impulso de irritação.
– Depressão!? Mãe é fogo. Aí que RAIVA!
Levanta e fica andando de um lado para o outro
- Ela tinha que ter dito isso pra ele!
Jonas senta na cama. Tapa o rosto com as mãos e faz um movimento brusco, indo para debaixo da coberta, como se estivesse se escondendo de alguém. Dentro das cobertas Jonas abraça as pernas e de olhos arregalados fala.
- Eu acho que vou morrer! Não sei se é verdade, por enquanto é só um pressentimento. Ontem a noite tive um sonho muito estranho. Sonhei que estava numa praia de areia branca, mar verde azulado, quase translúcido. Diferente de qualquer lugar. Na beira da praia havia um pássaro gigante. Ele mergulhava a cabeça na água e voltava com o bico cheio de peixes que mastigava.
- Que gosto tem?
Ele me olhou e disse:
- Só tem um jeito de saber.
Ele me apanhou com o bico e engoliu. Tem alguma coisa eu preciso entender, ver, sentir, ouvir... alguma coisa que não consigo pegar, sei que está em algum lugar. Sinto isso...

Lembram daquele que eu disse que me observava? Ele veio me visitar ontem a noite. Entrou pela janela que estava aberta. O engraçado é que eu moro no 20º andar. Perguntei para ele como ele tinha chegado no meu quarto pela janela. Ele disse que não precisava me dizer por que eu sabia. Ele falou isso porque eu sei, nada que eu posso ver existe. A realidade está no mundo invisível. Ele perguntou se eu queria ir embora com ele. Eu perguntei para onde. Para o mundo de verdade, ele disse. Eu quis saber se poderia levar a minha mãe e ele disse que não, então eu não quis ir. Se eu fosse embora acho que minha mãe enlouqueceria.
Falei para minha mãe sobre Mentu – é este o nome dele – ela quis saber mais e contei também que haviam dobras no tempo e era possível viajar nele. Que isso já tinha acontecido comigo numa noite dessas, quando vi a manhã e a noite em poucas horas. Contei da existência de uma realidade invisível. Ela me ouviu em silêncio.

Agora passo muito tempo dormindo, é difícil ficar em pé e minha cabeça está quase sempre embaralhada. Meu amigo disse que minha mãe está colocando um remédio na minha comida e que é esse remédio que me deixa sonolento. Perguntei para minha mãe e ela negou. Pareceu muito ofendida. Acredito nela.

Mentu me mostrou uma cápsula de comprimido, disse para eu prestar atenção que eu veria um pedaço do dele sem estar diluído na sopa do final da tarde. É verdade, eu vi. Era o mesmo que ele tinha me mostrado. Acho que minha mãe acredita que eu estou louco.

Agora fico pensando se eu estou louco e a minha mãe tem razão. Perguntei ao meu amigo porque ele não aparece para ela também. Mentu disse que ela primeiro precisava acreditar, só depois ele apareceria, disse isso e depois desapareceu. Fiquei surpreso ao vê-lo sumir. Foi a primeira vez. Desde este dia não o vi mais. Já se vai quase um mês. Meu sono voltou a ficar mais tranqüilo. Resolvi dizer para ela que achava que tudo não passava de alucinações. Ela confirmou, perguntou se já tinham passado. Respondi que não sabia. Ainda não tenho certeza.

As coisas quase voltaram ao normal, mas um dia, eu estava sentado na cozinha, almoçando com ela, quando Mentu apareceu de repente. Fiquei sobressaltado. Ela percebeu e perguntou se eu estava vendo algo. Eu disse que sim. Eu perguntei se ela estava vendo, ela disse que não. Foi aí que algo estranho aconteceu. Mentu disse que ia soprar uma mexa de cabelo dela. Foi rápido, mas o vento tirou do lugar o cabelo dela. Foi apenas uma mexa. Eu gritei: ele existe! Ele existe! Enquanto ela me respondia: foi o vento, foi só o vento.

Estou amarrado na cama e Mentu me olha de longe. Eles tiraram minhas roupas, relógio, anel, pingente. Eles bateram em mim, porque eu não queria que tirassem. Agora, passo a maior parte do tempo sedado, mal consigo ficar acordado, quanto mais falar. Não recebo visita de minha mãe. Estou muito triste.

Hoje me decidi, falei com Mentu que quero ir embora com ele. Meu amigo disse que teremos que pular do terraço do prédio, quis saber se eu tinha medo. Disse que não. Ele explicou que são doze andares até o chão, que se eu não acreditasse poderia me esborrachar. Eu disse que acreditava.
Não sei como Mentu fez, mas há dois dias pararam de me dar os medicamentos. Agora consigo ficar mais tempo acordado, tiraram as amarras e me colocaram numa enfermaria com mais 13 pessoas. O lugar é, com certeza, uma espécie de manicômio.
Chegou o dia. Um homem muito esquisito me acordou logo cedo, era o cara da cama nove. Ainda era noite, mas parece que todos estavam acordados e estranhamente calmos. O homem esquisito me escoltou até o terraço. Perguntei se conhecia Mentu e ele respondeu: Mentu, Mentu, Mentu... Não consegui nada, além disso.

Estou no terraço do prédio. Procuro por Mentu e o vejo surgindo no horizonte, junto com o sol. Ele me acena e diz que eu devo pular. Olho para baixo e uma pontada de medo me atravessa o coração. No mesmo instante, meu amigo desapareceu. Sento no chão do terraço e choro. Não consigo, não acredito que conseguirei vencer a gravidade. Mentu surge do meu lado e me abraça, ele me conforta e diz para não chorar, não há problema em não conseguir. Enquanto me abraça, diz que as coisas vão melhorar, que eu vou voltar para casa, diz que vou terminar os estudos e serei um físico famoso. Pergunto para ele se não o verei mais.
- Me procure no futuro – ele disse isso e tudo mergulhou no escuro como se eu vivesse em dias sem sol durante muitos e muitos anos. Eu andava e pensava que era dia, mas na verdade o amanhecer não despontava e era noite, dia após dia.

Hoje vi Mentu no final da sala, quase desaparecido no meio da multidão que tinha se aglomerado para escutar a palestra. Há muito tempo tinha parado de procurá-lo. Faz mais de 20 anos que sai do sanatório. Depois de uma trajetória cheia de altos e baixos, agora realmente tenho um certo sucesso, como Mentu disse que teria...
... Talvez hoje eu possa dizer para ele que estou preparado para dar o salto, mas acho que o desafio será outro. Acho que tenho que descobrir, enfim, o gosto que o peixe tem ao ser ingerido por um pássaro gigante. Só assim poderei atravessar a barreira do invisível...



Coragem

Naquela antevéspera de natal a neve se atirava nas janelas, nas calçadas e nos tetos das casas há dias, formando no chão a ilusão de um espesso algodão de quase um metro de altura. Flocos silenciosos se amontoavam uns sobre os outros, compondo uma imensa paisagem estática, um quadro sem movimento. Apenas a neve destoava, caindo e caindo sem parar. Era um impressionante tapete acústico a céu aberto, onde os sons morriam abafados, emudecidos no frio.
Theo, sentou-se na cadeira, ao lado da janela, e ficou olhando a neve cair. Seus olhos se perdiam em memórias que ele não conseguia mais ordenar, como se os sons, os rostos, as vozes e os lugares de todas as épocas se misturassem, ao mesmo tempo em que também caia sobre ele um profundo silêncio, onde nada é de fato, tudo são fragmentos que se partem e se partem num espaço cada vez mais branco, como se a memória fosse tirando um elemento de cada vez. Primeiro as cores, os sons e aromas, depois as formas, dimensões, traços e moldura, até não existir mais nada, apenas o papel em branco. De vez em quando uma imagem qualquer saltava, sobressaindo se tornando viva, para ir aos poucos sendo subtraída, se apagando...Sua mente vagueava sem perceber o tempo passar. Olhos vítreos na janela que ia ficando cada vez mais e mais embaçada.
Talvez...já fosse outro dia...talvez, meses tivessem passado e ele não tinha se dado conta. Pareceu que a eternidade estava ali, naquela imagem fixa que ia se tornando cada vez mais em nada.
Percebeu que a neve tinha parado, mas não era uma percepção consciente, era mais uma espécie de interação autômata com a realidade, como se uma neblina densa estivesse sobre ele, como se o ver, estar, falar, qualquer verbo, estivesse sempre se dissolvendo minutos depois de ter acontecido.
Abriu a janela.
Lá fora estava seu neto, tentando montar um boneco de neve e chamando pelo pai.
Janela...neto...boneco...pai...as coisas se misturavam dentro e fora de sua cabeça, perdendo seus conceitos concretos e se intercalando, se emaranhando num carrossel abstrato, perdendo todo o significado.
Quando ia sentar-se novamente na cadeira de balanço, viu alguém saindo pela porta, mas não conseguiu destingir quem era. Arrastou seus pés até lá, abriu a porta e chamou...
Um nome qualquer saiu de sua boca. Capaz de nem ser um nome, mas alguma coisa. Estava parado com a porta aberta atrás de si e já não sabia mais porquê, o quê, qual, então resolveu voltar para o quarto. Quando já ia virando de costas, uma moça de uns quinze anos apareceu no corredor, junto com outra menina.
Chamou vovô? Ela perguntou.
Não...ele disse, sem entender direito quem ela era, e fechou a porta.
Viu um pássaro pousado no peitoral da janela e foi até lá, mas o pássaro voou, e quando ele chegou perto da janela, lá fora não era mais neve, o sol brilhava numa paisagem meio seca, meio úmida, com algumas árvores e um céu azul exuberante, delimitado pelo quadrado da janela.
As cores eram tão vívidas que lhe ofuscaram e ele teve que fechar os olhos para poder enxergar o que acontecia.

Seu irmão, aquela pequena criatura surda-muda que ele abandonara e que volta e meia vinha assombrar seus sonhos, lhe puxava a camisa e grunhia alguma coisa. Os olhos demoraram um pouco a se acostumar com a pouca luz da casa, em contraste com as cores de lá fora, do sol...a criança, lhe puxando a camisa, foi se formando naquela sombra.
Teve que se voltar para um passado que havia se perdido, se confundido, que ele tinha enterrado e esquecido há muito, muito tempo. As imagens daquela manhã de domingo foram se compondo nítidas ao seu redor e ele se transportou para aquele dia completamente. Esquecido que já haviam se passados anos e que ele não era mais um imberbe de quinze anos. Mas à alma é dado milhões de artifícios para reconciliar a memória e o coração.
O que era mesmo que ele queria? Olhou a criança.
A mãe estava no fogão. Mas o cheiro que sentiu foi o do mar, vindo de alguns quilômetros à frente que entrou pela casa trazido pelo vento.
Theo, falou sua mãe, não fique ai como se não entendesse o que ele quer.
Ouviu a sua mãe, mas a vontade que sentiu foi de correr para algum lugar, ficar sozinho e escondido...
Às vezes, ficava assim, parado por grandes minutos e entrava num mundo à parte, tomado por uma espécie de autismo relâmpago, que aos poucos, com o passar do tempo, abriria um buraco por onde escoaria toda sua memória, numa esclerose sem volta.
Seu irmão continuava lhe balbuciando alguma coisa que realmente demorou a entender. O menino não aparentava os 10 anos que tinha, mirrado e desnutrido, surdo-mudo, vivia num mundo repleto de silencio. Quando tentava romper a barreira, gesticulava em demasia e sons guturais lhe saiam da garganta. Theo tinha vergonha de leva-lo consigo quando saia para algum lugar, as pessoas o chamavam de demente, retardado. Então, vivia mais em casa.
Ele repetia o mesmo som gutural, confiante que o irmão mais velho, por algum processo quem sabe adivinhatório, compreendesse o que ele queria. Theo pegou do pote o último copo de água que tinha e lhe deu. Enquanto Sarin bebia, foi olhar quanto ainda tinha de água no tonel. Não chegava a um palmo, mal daria para terminar o almoço.
Olhou cansado lá para fora, pensando que teria que andar quase dois quilômetros até o poço mais próximo, já que o deles tinha secado há dois dias. Pegou a vara que ele apoiava nos ombros para carregar as duas latas e avisou a mãe que iria buscar água. Ela apenas lhe recomendou que não se distraísse pelo caminho e voltasse logo. Seu irmão quis ir, mas ele nem cogitou.
Não foi pela estrada, cortou caminho descendo a encosta e cruzando as intermináveis fileiras de árvores ressequidas.
Ele não saberia dizer quanto tempo tinha passado, aquele dia estava diferente. O vento tinha outro som, o céu era de um azul mais intenso, o sol, apesar de sempre muito quente, não lhe incomodou durante todo o trajeto, ao invés disso, sentia com felicidade a impressão quente de seus raios no corpo. O chão deslizava estranhamente pelos seus pés.
Foi quando voltava, estava a uns 100 metros de casa quando ouviu o primeiro tiro. Lembrou-se das conversas que rondavam a cidade a cerca dos soldados que tinham tomado o país. Ele soltou as latas no chão, que no alvoroço caíram de lado derramando a água, e correu, mas quando estava chegando perto ouviu outro tiro, o que o fez parar e se abaixar repentinamente. Foi andando agachado até conseguir avistar a casa.
Eram seis homens. Três seguravam a sua mãe, que estava nua no chão, e o quarto forçava a entrada por entre suas pernas, ela tentava se soltar, se mexer, gritar de dor e raiva, mas o homem em cima dela tapava-lhe a boca. Amordaçavam sua alma que se debatia sem poder se socorrer, vendo a vida escapar por entre os dedos. Batiam no seu irmão, divertiam-se com o mutismo dele. Um dos homens tentou suspende-lo pelos cabelos, enquanto o menino chorava em quase silêncio, através de pequenos grunhidos. Quando os cabelos se soltaram da cabeça e Sarin caiu no chão, ele encostou a arma nas têmporas do menino e atirou. O tiro ecoou, ecoou e desde aquele dia não parou mais de soar, tinindo insistentemente.
As palavras e os risos, os urros e gemidos de prazer pareciam se impregnar no chão, na casa, nas árvores, no ar e nos ouvidos de Theo. Ele estava paralisado, abaixado, chorando de dor e de pavor, mergulhado num medo abissal que não o deixou se mover. Quis lutar contra aqueles homens, mas teve medo. Desejou correr, mas não conseguia se apartar dos seus. Ele não conseguiu sair, nem entrar na cena, viu tudo e foi se dilacerando, se despedaçando em dor.
Depois do tiro o vazio tomou conta de tudo e as cenas continuaram a transcorrer como soltas num vácuo, numa visão do absurdo, do que não tinha sentido algum...
Sua mãe mordeu a mão do soldado, conseguindo se desvencilhar, gritou a plenos pulmões, pedindo socorro, um grito que se juntou aos outros sons, cheio de desespero e desprezo. Ela estava sob o corpo do terceiro dos quatro que se revezavam. Ele a esbofeteou com força e ela calou-se desacordada.
Depois, ele se levantou, puxou as calças, e com a mão sangrando da mordida, pegou o revólver e empurrando o quarto que se preparava para saciar-se também, despejou todas as balas. Theo chorou baixinho, sem conseguir se mexer, maldizendo o dia, a vida, o ar que respirava, queria poder entrar na terra e sumir, mas se sentiu fraco, o mais fraco de todos os seres humanos, desejou, agarrado a terra seca, que tudo não passasse de um pesadelo e ele pudesse acordar noutra realidade.
Então, tudo era apenas silêncio, mas um silencio inquieto, bêbado e insone... ficou assim, mergulhado num sono confuso, cheio de febre e dor. Por um tempo que pareceu se estender pelo infinito.
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Sentiu a boca cheia de terra, os olhos ainda úmidos e o corpo dolorido. Tinha adormecido. Levantou a cabeça e viu a mãe e o irmão estirados sob chão e uma grande mancha encarnada a lhes aureolar os corpos.
Limpou a boca e os olhos e levantou-se. Passou por eles e pegou uma pá nos fundos da casa. Fez uma cova rasa. Colocou os dois juntos. O céu lhe assistiu em silencio todos os movimentos, o tempo parecia suspenso. As pás de terra se sucediam e nenhuma nuvem encobria o sol, nem ousava brincar no firmamento. O azul era intenso, um azul melancólico e assustador. Quando já estava botando o último punhado de terra ouviu um tiro. Largou a pá, entrou dentro da casa correndo e buscou debaixo de uma telha, em cima do fogão, algumas economias que a mãe tinha guardado. Colocou dentro do bolso e correu, não olhou mais para trás. Cortou caminho pelas encostas, evitando as estradas. O dia já vinha anoitecendo.
A cidade estava cheia de soldados.
Passou ao largo e continuou caminhando.
Queria sumir dali, mas as vozes lhe perseguiam, as cenas se repetiam na sua cabeça e ele não conseguia deixar de ver e ouvir, ver e ouvir, ver e ouvir, como um eco ensurdecedor...era um traidor...um covarde. Chorava compulsivamente, queria acordar, acordar, acordar, acordar...

Eram lembranças .... e outras, e outras mais começaram a saltar sobre ele, trazendo consigo os cheiros, pensamentos, sentimentos, palavras, imagens, um barulho intenso.
Os sons das bombas giravam sobre sua cabeça zunindo e explodindo feito uma festa enlouquecida, onde tudo começa a sair de foco, perde a gravidade e vai pelos ares. Ares infestados de pólvora e flores, ares infestados de cores, ares onde se respira o colorido dos fogos...
Viu-se correndo da trincheira, pelo campo aberto, no meio do fogo cerrado, girando e rindo, sentindo o calor dos fogos de artifício. É tudo uma brincadeira, dizia para si mesmo em meio ao barulho infernal das balas cruzadas... se uma bala não o ferisse sem perigo, se ele não caísse desacordado na lama de um campo da França, talvez ali ele tivesse partido.

Mas sua vida foi longa, tão longa quanto ele nunca pensou que pudesse ser, parecia que a tinha esticado muito além do que estava programado, como se todos os acontecimentos somassem uma disposição feroz de lutar pela vida. Passou pela guerra, por uma bala perfurando o peito, se aventurou no novo mundo, ganhou a América, trabalhou fazendo quase de tudo, teve várias mulheres, prostitutas, donzelas, casadas, foi vagabundo, cafajeste, apaixonou-se perdidamente, quase insanamente eu diria, casou-se, constituiu família, estabilidade, maturidade.
Viveu sempre assim, apaixonado, tão completamente entregue a tudo que às vezes se perdia. Parecia que não queria desperdiçar nenhuma gota, nenhuma respiração. Teve um filho e lhe ensinou tudo que sabia, o viu crescer, se tornar homem, casar-se e ter filhos. Viu a morte dolorosa de sua esposa com câncer no estômago, e isso quase o consumiu definitivamente. Não o matou, mas acelerou a esclerose que sempre dera sinais de sua presença.

Olhou para si mesmo e se viu novamente com 17 anos. Um garoto ainda preso à culpa de não ter lutado pela mãe e o irmão. Ir para a guerra foi uma espécie de ato de contrição, mas lá no fundo, bem lá no fundo, a culpa ainda permanecia, também foi ela que o fez sempre lutar tão bravamente pela vida, afinal, vivia por três.
Da janela um clarão maravilhoso tomava todo o quarto.
Saiu por ai.
Viu um céu que mais parecia mar. Andou por ruas que tinha percorrido e reviu pessoas com que tinha convivido, conversado, ou apenas estado ligeiramente. Todos eram conhecidos.
Viu a sua mãe, irmão e esposa, os três lhe sorriam e ele silenciosamente lhes pediu perdão, por não ter sido mais, por não ter feito mais e por ter demorado tanto. Os três lhe chamavam e sorriam, sem se importar com o que se passava no seu coração, então, ele pensou que tudo talvez não tivesse passado de um sonho que só agora começava a acordar...
Esse pensamento cruzou a sua mente no mesmo instante em que sentiu uma lufada de vento bater nas suas costas, virou-se. Era um homem, mas tinha um rosto feminino de uma beleza clara e mansa que lhe encheu os olhos, cabelo negro caído sobre os ombros, túnica branca, olhos castanhos claros, tão claros que se espalhavam numa ternura ímpar, numa doçura calmante. Um sorriso que contagiava de felicidade. Ele não via as asas, mas sabia que existiam, era um anjo.
Alçou voou e Theo pode ver um céu repleto deles, indo e vindo acompanhados de uma espécie de música celeste, como sinos, mas mais suave; um coral, mas mais sublime. Assim como Theo, todos caminhavam numa mesma direção, subindo uma extensa escadaria em espiral que do topo emanavam raios de sol, faíscas que lhes alcançavam os corpos e iluminavam os corações.
A escadaria era incrivelmente alta e ia diminuído de espaço à medida que se elevava, até que coubesse apenas um em cada degrau e até que não houvesse mais espaço para o corpo. Olhou para si e viu que estava nos primeiros degraus dessa subida. Viu também que alguns se debruçavam da escada e mergulhavam em direção as nuvens abaixo, como crianças ansiosas por brincar, presas em memórias de sentimentos e prazeres, seduzidos pelo sonho que não esqueciam. Desapareciam, tragados pelas nuvens que pareciam de algodão-doce, ou uma neve de brincadeira.



Amar é um risco

Um raio de sol atravessou uma das frestas da janela e pousou suavemente sobre os olhos de Raquel, mas ela não acordou, virou-se para o lado da parede e puxou o lençol para o rosto. O quarto já estava claro, uma luz tênue iluminava as cinco camas, duas beliches, onde estavam dormindo suas irmãs mais novas, e a cama dela, que ficava abaixo da janela. Era uma casa pequena, dois quartos, sala e banheiro. A cozinha havia caído com a chuva e agora eles improvisavam tudo na sala. Os pais dormiam no quarto da frente e as cinco irmãs no quarto ao lado do banheiro, dando para a sala.
Raquel se virou mais uma vez e desta abriu os olhos. Continuou deitada, olhando a pequena claridade do quarto, mas depois tomou coragem e levantou-se. Era ela quem preparava o café da manhã para a família, e este era o último dia de quase dez anos dessa rotina, não que estivesse cansada ou almejasse algo diferente, não lançava seu olhar longe de sua própria vida. Para ela, cada dia já estava determinado, a vida apenas humildemente obedecia a leis traçadas há muito tempo. Não era prudente se desviar.
Mas hoje sua vida iria mudar completamente, à noite iria se casar e passaria a morar com o marido, por enquanto, ainda, num pequeno puxado, nos fundos da casa do sogro, mas futuramente teria a sua própria casa.
Pegou a toalha e uma muda de roupa e foi em direção ao banheiro, dava os últimos passos para o fim daqueles dias. Algo como uma leve melancolia lhe assaltou, um pouco de tristeza por ter de se despedir definitivamente de uma vida que ela já conhecia tão bem, mas não quis se deter nesses sentimentos, preferiu outras emoções, que também lhe corriam às veias, e ali, sob a ducha forte, seu corpo exalava o perfume fresco da excitação.
A água percorria a pele dando voltas, como se o chuveiro teimasse em despejar de sua boca apenas grandes gotas que viajavam tenazmente toda a extensão do corpo. O cabelo, extremamente crespo, era curto, mas lhe ficava bem no rosto anguloso. Olhos grandes e castanhos, cuidadosamente harmônicos com um nariz reto e uma boca nem tão carnuda assim. Alguns quilinhos a mais haviam se espalhado pelo seu corpo nos últimos anos, escondendo um pouco a sua beleza.
Logo cedo, Raquel decidiu pela igreja, a devoção e a religião. Assim, nunca tinha parado para cuidar desse lado. Mas, naquele momento, deixou que as gotas de água percorressem seu corpo como nunca havia permitido. Não fez movimento algum, apenas sentiu a água brincando entre os mamilos, descendo pela barriga, se escondendo entre os pelos da vagina e escorregando pelas pernas.
Raquel era virgem em todos os sentidos. A sua pureza era um misto de medo e crença fervorosa. Agora, estava preste a conhecer um homem, aquele a quem ela havia escolhido, depois de muito ter relutado, é verdade, mas não porque seu coração não o amasse, o reconhecia como seu destino, mas tinha medo desse amor, de se perder nesse amor e acabar se apartando de Deus. Enquanto tomava banho, se deu conta que boa parte disso iria mudar. Sabia que a vida entre marido e mulher era muito mais do que as simples carícias que trocara com seu noivo ou um ou outro beijo mais ousado. Só uma vez tinha sentido o corpo dele contra o seu e pareceu-lhe estarem nus, se abraçando. O recriminou severamente: isso é atitude de um pastor! Passaram-se dias até que ela o desculpasse. Mas aquela impressão ficou marcada.

Ele estava no púlpito, virado de costas para a porta de entrada, por isso não viu quando Raquel e sua família entraram. O pastor Isaías pediu para que ele fizesse a preleção daquela manhã. Issac havia se formado há poucos meses e esperava surgir alguma congregação para onde seria designado como pastor. Aquela era a igreja que freqüentara desde criança, conhecia todos ali, não havia segredos escondidos para serem descobertos e o pastor Isaías cuidava de seu rebanho com muito zelo. Mas a primeira preleção, ainda que fosse a mais tranqüila do dia era também o início de tudo. Por isso, antes de começar, Issac deu alguns minutos para acalmar o coração. Virou-se e viu, numa das fileiras da frente, Raquel. Seus olhos percorreram os olhos dela e mergulharam no perfume doce de sua pele, ele sentiu um estremecimento, como uma pequena descarga elétrica que veio descendo a espinha dorsal até depositar-se entre as pernas. Por um instante titubeou, temeu que todos tivessem percebido. Olhou para o pastor, que lhe retribuiu num sorriso cúmplice e então começou.

Raquel olhava para Issac, ouvia as palavras que saiam de sua boca, via seus gestos, seu tom de voz, procurava perceber onde ele queria chegar, qual a linha do seu raciocínio. Será que ele sabe mesmo do que está falando, ou apenas tateia, procura a verdade como eu também procuro? Mas os olhos de Issac brilhavam e a alegria parecia se expandir do corpo dele pela igreja. Ela olhou para trás viu o seu pai, sua mãe e irmãs, meio extasiados. Viu que as pessoas todas pareciam hipnotizadas pelo que ele dizia. Quis se levantar para poder olhar melhor. Parecia que estava sozinha no meio de todos eles. Por um momento os sons se distanciaram e ela apenas viu a igreja, cheia de gente que amava escutar tudo o que podia ser dito no púlpito, mas que entendia realmente muito pouco, assim como ela. Olhou como a igreja era pequena, pensou como seria aconchegante ela toda decorada para a noite. Lembrou-se, naquele mesmo dia, ela estaria se casando. Voltou-se para ele, seus movimentos agora eram mais rápidos, sua voz estava alterada num fervor feérico. Ela se enternecia com seu entusiasmo, a energia viril que parecia sempre ávida a mergulhar no desconhecido, como um cavalo selvagem correndo. Uma espécie de pureza masculina que ela só conseguira perceber nele, que ela só conseguira enxergar nos olhos dele, uma surpresa que ela não pensara que podia encontrar nos homens.
Ele deve ter feito algum sinal ao pastor Isaías, pois esse se levantou, antes dele terminar e lhe interrompeu.
- Eu sinto muito em interromper a preleção de nosso irmão Issac, vejo como todos estão deliciados com as suas palavras, mas há gostinhos que devem ser deixados para apurar no paladar, por isso vamos deixar o restante que você nos tem a dizer Issac para a próxima reunião de domingo. – Ele sorriu para Issac e lhe falou baixinho – Assim, terei mais certeza que não farei um culto para cinco gatos pingados.
- Como o senhor quiser, pastor Isaías, estarei sempre as suas ordens e qualquer dia será um prazer falar novamente. – Issac lhe retribuiu o sorriso.
- Bom, antes de fazermos a última oração da manhã eu gostaria de anunciar e convidar a todos para o casamento de Issac e Raquel hoje à noite aqui nesta igreja, sei bem que todos já sabem, mas eu não iria perder essa oportunidade de falar algo para esses dois. Raquel... Por favor, minha filha, venha ficar conosco. – Raquel se levantou encabulada e se dirigiu ao púlpito, deu a mão para Issac e teve uma certa vertigem ao lhe tocar a mão suada. – Raquel e Issac são dois irmãos que se conheceram sob os nossos olhos e vieram a descobrir o amor aqui dentro desta igreja, isso só tem a alegrar meu coração. Todos conhecem a Raquel, sabem de sua dedicação a Deus, sua entrega, seus dias de trabalho sempre cobertos de alegria. Eu nunca lhe disse minha filha, mas foi uma grande tristeza quando você me falou que não pensava em se casar, queria apenas servir a Deus. O casamento é um dos maiores frutos que se oferece a Deus. Ainda bem que no seu caminho havia Issac e no de Issac havia você. Um homem nada é sem uma mulher, pois lhe faltaria um esteio, a costela que Deus sabiamente lhe tirou, onde está sua doçura, sua mansidão. A mansidão e compreensão que o homem só descobre com o tempo e ao lado dessa outra parte que é a mulher. Talvez existam exceções, mas não vivemos de exceções, vivemos do que é certo. E a mulher, sem o homem, seria o solo fértil sem semente e eu não falo apenas do coito e da procriação. Falo também de uma descoberta, que até pode passar pela maternidade, mas...não é só por ai... Alegra-me a união de vocês.
“Eu olho para esses dois e posso ver o fruto jovem do amor, um amor que eu sei que ainda não desabrochou, mas só em ver o seu botão já é possível sentir seu perfume raro. A compreensão, o companheirismo e o crescimento mútuo, onde um apóia ao outro, onde um incentiva ao outro a descobrir a verdadeira alegria de se estar neste reino de Deus. E quando esse botão, enfim, desabrochar, só haverá beleza”.
“Agora vamos orar”. – todos se levantam. – “Para que esses dois possam sempre encontrar a graça aos olhos do Criador e para que todos os casais que existem possam descobrir qual é a graça de se viver a cada dia tão próximo de alguém”.
Depois da oração, enquanto todos se dispersavam e entre um e outro cumprimento oferecido a Issac e Raquel, o pastor Isaías bateu levemente no ombro de Issac e olhando nos olhos de Raquel, disse: espero que vocês consigam chegar até a noite. Ela corou, mas Issac não entendeu direito o que ele quis dizer. E retrucou meio surpreso.
- Mas é claro pastor!
- É só uma brincadeira, Issac. Eu sei que vocês não se perderão até a noite. – E então saiu.
Issac ficou olhando para o pastor, tentando descobrir por entre as palavras que ele tinha dito, a verdadeira mensagem que ocultara, mas Raquel o puxou até sua família e ele acabou se distraindo nas conversas e brincadeiras a cerca do casamento. Ficaram ainda algum tempo conversando, mas logo foram separados.
Olhavam-se de longe, de vez em quando, e os olhos diziam coisas que não cabiam serem traduzidas. Depois ela foi se despedir dele e trocou um leve beijo, quase acanhado por estarem em público. Ela caminhou para a porta enquanto alguns jovens rapazes da comunidade, aspirantes ao reconhecimento e a importância que uma posição na igreja lhes granjearia, além de reconhecerem a bela palestra que ele tinha proferido, perguntavam a ele como era esse mundo do saber, queriam entender como havia sido sua formação, onde tinha sido...e os olhos dele não queriam se apartar dela, seguindo o seu caminhar, até que Raquel atravessou o portal de entrada. Foi como se a luz se apagasse.

A cerimônia transcorreu na mais completa ordem, teria sido perfeita se não tivesse sido a chuva que caía, enlameando a estrada de barro e inevitavelmente sujando a igreja. Na correria ela pisou numa poça d’água, molhando os sapatos e um pouco do vestido. Mas fora isso, tudo eram só benesses.
Agora estavam os dois, sentados na carroça, juntos com o pai e a mãe, os dois irmãos e a irmã dele, atravessando ruelas frias e meio escuras, cantando as músicas da igreja. A família dela seguiu até certo ponto, mas depois também pegou o seu rumo. Já estavam perto da casa quando a chuva caiu novamente. Era forte, muito mais forte do que a que caíra durante o casamento. Chegaram encharcados. O pai dele gritou: pegue a sua mulher, vá para casa e amanhã não se preocupe em acordar cedo! – e falou ao seu ouvido. – aproveite o “tempo” para ficar até tarde na cama.
Todos entraram e eles foram pelo bequinho, para os fundos da casa, se protegendo no beiral das telhas. Ele parou, sem se importar com a água que caia, a puxou para si, a colocou nos braços, caminhou em direção a porta e entrou. Estavam sós.
Ela foi buscar duas toalhas, entregou uma para ele e foi para o quarto se enxugar, estava nervosa. Ficou em dúvida se tirava o vestido ali, ele podia entrar a qualquer momento. Depois sorriu consigo mesma, estavam casados, era natural que se conhecessem despidos. Tirou a roupa e começou a se enxugar. Assustou-se quando ele apareceu na porta, ainda de toalha na mão. Também parecia nervoso. Ele tirou a roupa ali, na entrada, ela o tempo todo de costas, queria virar, mas não teve coragem. Ele se aproximou dela e a tocou nos ombros, os dois se abraçaram.
- Você está tremendo. – ele disse.
- Tudo isso para mim é novo.
- Para mim também, eu nunca estive com uma mulher assim antes.
- Verdade?
- Jamais mentiria para você. Eu nunca...
- Me abraça.
E ficaram um tempo assim, apenas abraçados e nus. Foi ele quem tomou a iniciativa, começou a beijar-lhe o pescoço e em pouco tempo as duas bocas se encontravam e trocavam pequenas carícias antes de se beijarem. A chuva lá fora caía torrencial, água sobre água, inundando os córregos e derrubando casas, criando uma calamidade que só no dia seguinte poderia ser vista a proporção: 12 mortos e centenas de desabrigados. A família dela perderia o resto da casa... mas eles não pensavam na chuva, sequer a escutavam. Ela beijava o seu ombro, o seu peito e sentia o seu hálito e era como mergulhar num carrossel inimaginável. Queria que ele a amasse, queria sentir a sua pele, queria cheirar o seu cheiro, deixar que os suores se misturassem numa alquimia inebriante. Ele, não se continha de alegria, cada pequena parte do corpo dela era uma nova descoberta, as pernas, os braços, os seios, a boca, as mãos, as coxas, o sexo. Seu coração disparava no peito, incontrolável. Os dois se abraçavam e prolongavam ao máximo as carícias, absortos nas delícias desse primeiro encontro, nas descobertas. Aos poucos foram perdendo as vergonhas. Ele lhe apertava contra seu corpo e era como não suportar, talvez não fosse só prazer, mas a felicidade, a vontade de rir. Também havia a dor, mas uma dor pequena comparada a tanta felicidade. Ela sentiu um pequeno incomodo ao perder a virgindade e ele, talvez, quem sabe, por se sentir tão ligado, também sentia a mesma dor. Ele estava dentro dela e era como se ela estivesse dentro dele, ele a rasgava para lhe alcançar o coração e ela lhe partia para mergulhar no seu coração. Os dois se comiam numa antropofagia mútua, e desejavam ardentemente se diluir um no outro, se perder, se encontrar. Já não havia mais juras, apenas sussurros apaixonados, as peles eram brasas ardentes que se tornavam incandescentes. Os corações eram como dois luminares clareando a noite. Quem de fora olhasse pela janela não veria a cópula de um casal, mas o brilho cego da paixão, aceso num riu cheio de cascatas, cheio de quedas, com os sons ensurdecedores, mas acima de tudo, cheio de vida.
Adormeceram depois de um gozo prolongado, caíram quase desmaiados, aos prantos por se darem tanto. Adormeceram ainda abraçados, um dentro do outro, dilacerados, partidos, mas absurdamente unidos.
Acordaram logo cedo. Bateram na porta falando da calamidade em que a cidade se encontrava, ele se vestiu as pressas, ela também. Sua família estava na casa do tio, disseram, haviam perdido quase tudo.
Raquel e Issac separaram-se a contragosto, uma dor fininha doía no coração de cada um, era como vê-los se dividir. Ele foi conseguir suprimentos, barracas, ajuda para os desabrigados, ela foi consolar sua família e ver a situação de perto. Os dois só se encontrariam na hora do almoço.
Ele olhou para trás e a viu se afastar...olhou para o dia e ao redor...olhou para dentro de si. Percebeu que algo tinha mudado. Era uma sensação de familiaridade nova, diferente de tudo que já havia experimentado. As imagens ganhavam outra textura, como se pudesse perceber os minúsculos grãos que compunham o quadro da natureza. Ele estava vendo tudo muito de perto e ao mesmo tempo era uma visão de amplitude.
Mas então, lembrou-se das palavras do pastor: “sei que não se perderão até a noite”, e um pensamento triste lhe veio a cabeça; amar alguém assim, só podia ser pecado. Rememorou os conselhos do pastor a cerca do amor carnal, dos perigos desse fogo que acaba por incendiar a alma e levar o mais sensato dos homens a agir como um animal cego, irascível, abandonado aos desejos.
Sabia que o que sentia não vinha só do corpo, era muito mais a alma que lhe entontecia. E tudo aquilo que o pastor havia falado sobre o amor, sobre a beleza da união, também não era verdade? Pensou consigo mesmo...estava confuso. Talvez tudo fosse apenas isso, confusão e ele deveria era se entregar e viver toda a intensidade que sentia.
As nuvens no céu começavam a se dissipar e com o sol no horizonte do dia, a beleza se espalhava no firmamento, nos mais variados tons de azul. Então, todos os pensamentos foram se distanciando e um brilho quente lhe assomou o coração, fazendo-o transbordar pelos poros, era o amor, teve certeza, nada o sombrearia.




O projetor roda sozinho...

Seus passos rápidos atravessavam a rua. Olhos distantes. Seus passos largos avançavam pelo tempo. Ele não percebia o vento entre seus dedos, o calor do sol sobre sua cabeça, nem o som que vinha do seu corpo, com as batidas ritmadas do coração. Seus olhos abertos olhavam, mas não viam. Ele andava e parecia ver, mas na verdade tateava, andava em voltas num único ponto.

Apesar de isolar-se em si, escondendo-se na solidão, tinha todos os tipos de parentes: irmãos, pai, mãe, tinha amigos, colegas de trabalho. Uma multidão. Tinha pessoas a sua volta. Todo o circo estava armado, ou melhor, o filme já estava no projetor fazia muito tempo.

Assistia ao filme, via a película no projetor. Era seu próprio filme. O filme do seu próprio silêncio, do seu circo armado e abandonado, cobrindo-se de poeira...

No filme que assistia, havia uma paisagem desolada. Um vento impossível castigava um velho e uma criança que atravessavam, perdidos, um imenso deserto de gelo. O velho, a criança e o homem (ele que apenas via o filme, acreditando que era incapaz de interferir na destruição). O velho e a criança armaram uma barraca e lá dentro o som da tempestade se fez mais abafado. Esse foi o único som durante horas, seguido de um par de respirações lentas, olhos semicerrados, corpos enregelados.

Eles estavam morrendo e o homem ali parado vendo aquele silêncio avançar, destruindo o velho, a criança, a barraca, a neve e o vento.

Era um filme, ele pensou, e fechou os olhos e tentou respirar lentamente. O homem se levantou. Não quis mais ver o filme e pensou: já não resta mais consciência, dissipou-se o resto da sanidade.

No projetor o filme completou uma volta inteira e recomeçou a passar. Na parede branca as imagens nada nítidas, ainda meio borradas, começaram a se formar. O homem mergulhou, dentro da parede para viver a história de novo e não pensar em mais nada...

Era um exilado, como um desses poetas que se encarceram nas prisões do amor platônico e morrem desiludidos do seu próprio sentimento. Assim ele fazia com a vida, passava os dias se escondendo dela, ou a olhando de longe, prestando atenção nas suas curvas e em toda a felicidade que poderia viver com ela, mas não tinha coragem de dar o primeiro passo.

Reviu os sonhos, os ares de quando era criança, o amor, o primeiro amor na escola. A conversa jogada fora, as mentiras, as trapaças, os medos, agora tudo parecia tão pequeno. As imagens foram se tornando só escuridão, o breu, o silêncio.


Viajante solitário

Acordei ainda era dia. Já não sei há quanto tempo venho caminhando já não sei mais em que direção estou indo. Sentia fome e a fome era como a lembrança da urgência das coisas e eu ouvi o céu murmurar: levanta que ainda falta muito, mal saíste do princípio. Continuei andando então. Não passou muito tempo e divisei uma aldeia.
- Olá! – eu falei.
- Olá, quem vem lá? – era a voz do homem.
- Eu sou viajante.
- Pois se aproxime, aqui nós recebemos bem os viajantes.
Aproximei-me. Era um homem jovem, não devia ter mais de trinta anos.
- Você tem fome? – ele me perguntou.
- Sinto tanta fome que já não sei mais o que é não ter fome.
- Então é bom colocar algo para dentro, para refrescar a memória.
Ele me serviu umas rodelas de algo branco, com um copo de algo preto.
- Mistura não tem não – disse ele.
- O senhor não se preocupe que isso é muito mais do que eu mereço.
- Mas porque o senhor diz isso, cometeu algum crime?
- Todos os crimes que a mente pode cometer. Todos os pecados que o homem é capaz de fazer.
- De todos os dez mandamentos? – quis saber.
- Os dez.
- Mas como é possível?
- Como é possível viver sem quebrá-los?
- O senhor já matou, roubou, feriu alguém?
- Mato todos os dias, roubo e firo todos os dias.
- Isso que o senhor diz não tem sentido. Vê-se que o senhor não tem cara de ladrão ou assassino.
- O senhor não consegue ver através de meus olhos o coração, se visse, teria tanto medo que se esconderia de mim.
- Eu sou temente a Deus e sei que por mais que nós queiramos algo diferente do que Ele nos reserva, não há como escapar de seus planos. Veja eu mesmo, sempre quis viajar conhecer outros lugares, estudar, viver outra vida que não fosse essa de cuidar da terra, mas nasci o caçula de uma família de dez irmãos. Parece que minha mãe teve uma complicação e passou dez anos sem ter filhos, não acreditava que pudesse mais engravidar, depois de dez anos lá venho eu. O mais velho já tinha vinte anos, todos se debandaram pelo mundo, não sei de notícia de ninguém e eu acabei que fiquei aqui cuidando dos meus pais. Os dois morreram juntos, uma na segunda outro na terça, hoje faz três anos que os enterrei. Fiz um canteirinho lá para traz. Deus não me deu nenhuma oportunidade de cometer nenhum pecado, nenhum mal, mas também não conheço outra vida além dessa.
- Agradeça então a tudo por quanto tem e a paz que reina em sua mente.
- Se é tanta assim a dor que traz porque não a divide comigo?
- Não posso. Vivo um castigo.
- Não pode dizer nem qual?
- O castigo de ver, ouvir, sentir, pensar e fazer em meio a cegos, surdos, mudos, aleijados e loucos.
- O senhor brinca comigo...
- Não, quem brinca não sou eu. É Ele.
- O homem lá do céu?
- Quem mais?
O homem sorriu.
- E para onde vai?
- Vou em direção a linha do horizonte.
- Quer passar por baixo do arco-íris?
- Não, quero encontrar respostas.
- Então, boa sorte.
Então me levantei e segui e continuo até hoje.

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