Ficção científica

O que segue abaixo - eu espero que consiga mesmo levar esse projeto adiante - é uma história que escrevo já faz algum tempo. A história se passa bem antes da formação do planeta Terra. Aceito sugestões...


Pater II - Continuação

Kália

A nave era só uma carcaça. No chão, um grosso tapete de um pó fino, que dava a aparência meio aveludada, se parecia com uma esponja.
- Vamos permanecer todos juntos. – disse a comandante Kália a Btzere e Carbain.
Eles empunhavam as armas. Os três continuaram vasculhando os compartimentos da nave procurando por quem havia emitido o sinal.
- Comandante?! As paredes! – Alertou Btzere.
Kália acenou com a cabeça, demonstrando que estava vendo. As paredes tinham um leve movimento, pareciam seguir uma respiração.
Continuaram avançando. Sem saber caminhavam em direção ao laboratório. A medida que entravam mais na nave, o calor aumentava. Parecia que estavam entrando no corpo de algum animal.
No laboratório, membranas transparentes ligavam as paredes, envolvendo um coração que pulsava. Com os óculos infravermelhos via-se pequenos tentáculos, veias finíssimas que ao invés de bombear sangue sugavam, saindo e se misturando com o chão e as paredes.
Kália olhou para os outros dois e lhes indicou que apontassem junto com ela e atirassem ao mesmo tempo. Apesar daquilo não ter demonstrado nenhuma atitude ameaçadora, anos viajando pelo espaço a fizeram destingir com facilidade o bem do mal e era visível que aquilo havia se instalado ali e causara a destruição da nave. Talvez quem tinha emitido o sinal, também já não existisse mais por conta daquela coisa.
Os três atiraram. Os raios eram capazes de desfragmentar qualquer objeto.
Romperam as membranas com facilidade e atingiram o centro da coisa, mas não a desintegrou. Continuaram atirando, insistindo e ficaram um bom tempo assim, até que o centro vermelho parou de pulsar.
A temperatura aumentou rapidamente e as veias, até então tão finas, foram se elastecendo, tornando-se tecidos que avançavam pelo laboratório querendo sair. Tentáculos saltaram do centro e atravessaram os capacetes de Btzere e Carbain, puxando-os para si e então várias cabeças que começaram a surgir aos montes nas membranas e tecidos, dilaceraram seus corpos. Kália tentou atirar mais uma vez, mas viu que o monstro aumentava com os disparos. Então, correu. Correu, enquanto tudo parecia se mover, enquanto tinha a sensação que os tentáculos tentavam segurar suas pernas.
Alcançou o módulo terrestre e saiu em disparada. Havia ondas pelo chão, vibrações que saiam daquele lugar para todos os lados. Olhou para trás, já distante, e a nave estava vermelha. Tudo começou a se mexer, o planeta parecia estar entrando em convulsão.
O módulo acusou o reconhecimento de um corpo a nordeste de onde estava. Desviou-se, aproximando-se.
Havia um homem no chão. Estava desacordado. Não era possível dizer a quanto tempo estava ali, seu corpo estava frio, mas ainda vivia. Eram de raças afins, percebeu. Tinha aprendido a destingir rapidamente a raiz genética das várias raças que encontrava, era preciso, para reconhecer rapidamente os aliados.
Certamente era esse homem que procurava, era ele quem tinha emitido o sinal.
Pensou no que ele poderia ter de especial para lhes fazer ir tão distante a sua procura. A frota toda assumira um marcha mais lenta e ela juntamente com mais cinco, foram designados para encontrá-lo e voltar a se unir no prazo máximo de 10 dias, já havia se passado 3. Era tempo de sobra...se nada acontecesse de errado. Lembrou-se... já perdera Btzere e Carbain...
Lá atrás o vermelho reluzia sibilante. A vibração começava a alcançá-los.
Arrasto o homem para dentro do módulo e ele, meio desacordado, falou alguma coisa ininteligível.
Kália tirou uma pequena arma de um dos bolsos do uniforme e encostou na testa dele. Atirou.
Ele caiu desmaiado.
Ela sabia que provocava alguma dor, mas queria poupar tempo. O pequeno chip que injetara, iria encontrar no cérebro a face da memória e inserir aí os conhecimentos da nova língua. Terminada essa operação ele se desmancharia e seria expelido junto às secreções. Quando acordasse já poderia entender tudo que seria dito e se fosse esperto, em menos de uma hora, estaria falando fluentemente.
O módulo arrancou a toda, pressentia que precisava sair daquele planeta o quanto antes. Mas começava a desconfiar que sair não seria tão fácil quanto chegar.

Ele estava sendo examinado por Lúman e Makra, numa espécie de departamento médico improvisado naquele velho cargueiro que Kália tínha recebido. Foi a forma que a Federação encontrou para não chamar a atenção da frota para a missão que lhes foi confiada a cumprir. Ficaria parecendo apenas mais um cargueiro indo buscar uma remessa de grãos.
Ela tentara, sem sucesso, inúmeras vezes dar partida nos motores, enquanto Zauibba havia descido ao compartimento de máquinas para averiguar algum possível defeito.
- Comandante Kália? – soou o intercomunicador.
- Sim Makra?!
- Por favor, precisamos lhe falar.
- Já estou descendo.
Lúman havia introduzido um aparelho pela boca do homem e vasculhava através do computador seus órgãos internos. Makra tinha colhido sangue, saliva e um pedaço de pele para um exame detalhado. Quando Kália se aproximou, doutor Lúman parou o que estava fazendo.
- Você estava certa, seu corpo é basicamente igual ao nosso. Os compostos químicos são compatíveis. Nossas raças vêm de uma mesma raiz, apesar de seu gen, em alguns pontos, demonstrar evoluções diferentes. A origem de sua raça eu não consegui precisar, sei apenas que é muito mais remota do que a nossa.
- A carga atômica dele é impressionante. – disse Makra. – Há uma capacidade nele de expansão, compreensão e apreensão do conhecimento que eu nunca vi antes. Mas seu nível de energia está caindo vertiginosamente.
- Já vasculhamos por todos os lados e não há nenhuma disfunção, que justifique essa queda energética.
- Eu já esperava por isso. – disse Kália.
- Você o conhece? – quis saber Makra.
- Achamos que seria interessante provocar um choque térmico. – disse o doutor – Temos alguns medicamentos que podem...
- Não, Lúman. – dizendo isso Kália abriu um pequeno compartimento de um anel que trazia na mão direita e entregou ao doutor uma minúscula ampola. –Injete isso no canal de sua espinha dorsal.
- O que é isso comandante? – Perguntou o médico, olhando para a ampola.
- Alguma espécie de energético. Um amigo dele me deu, disse que ele iria precisar.
- Você assume a responsabilidade!?
- Pode colocar no relatório. Me chamem quando estiverem prontos para fazer a aplicação.
Foi o cardeal Ogima lhe havia entregado o anel quando decidiam sobre o cumprimento da missão. Disse-lhe que o conteúdo tinha que ser entregue a pessoa que fosse encontrada e caso não estivesse consciente, lhe indicou para ser aplicado. Foi categórico ao dizer que a vida dele dependia da solução que se encontrava na ampola.

Kália entrou na sala de comando e Zauibba parecia um pouco contrariado.
- O reator está esfriando – disse – e eu já fiz tudo que poderia fazer, mas sua força continua decaindo.
Kália ficou em silêncio. Pensou no homem na maca, torcia para que ele voltasse a si o quanto antes, quem sabe pudesse ajudar a encontrar a resposta de como sair dali.
- Nosso inimigo está nos cercando. – disse para si mesma, antevendo o que estava por vir.
Zauibba olhou para a comandante receoso, lembrou-se de sua própria reserva em aceitar a missão. Sabia desde o início que era arriscada. Kália dissera de um inimigo oculto e muito poderoso e ela não era de exageros. Ele acabara aceitando por fidelidade a comandante, que muitas vezes lhe havia salvo a vida.
Ela nada comentara sobre as mortes de Carbain e Btzere, era um sinal. Não queria abater os ânimos. Ele conhecia sua bravura e também frieza, sempre disposta a tudo para cumprir o que lhe foi pedido. Apesar de não demonstrar, a morte de qualquer um dos seus lhe consumia. Quando chegou, trazendo o estranho, falou seco: Eles morreram. Não respondeu a nenhuma pergunta e agora estava silenciosa.
Enfim, ela o chamou, para mostrar no computador os movimentos das placas de rocha e de uma faixa vermelha cada vez mais próxima da nave.
Aquela coisa estava se aproximando rapidamente.

Deitado sobre a maca, Tibur respirava lentamente, sua mente vagava por imagens estranhas quando o doutor Lúman injetou todo o líquido amarelo da seringa, bem abaixo da nuca.
Viu uma luz intensa e cheia de glória, um maravilhoso silêncio repleto de som, um som inaudível, mas impressionante. Um planeta, cheio de mares e flores. Risos, sangue, guerra, muita dor, dor. Uma moça jovem chorava, a viu mais velha, com os olhos cheios de desejo. Viu-se olhando para uma arma, ele olhava e pensava no seu mecanismo e sentia dor e uma confusão infernal. Olhos de desejo, as bocas, eles se tocavam e um beijo voraz lhes consumia. Um desejo insano lhe ardia, uma premência, uma urgência que não conseguia suportar. Seus lábios sussurravam sem falar. Viu um ser frio, medonho, sem vida. Uma violência incontida, sangue e risos, rir loucamente. Queria fugir, mas ele o perseguia, era uma multidão e quanto mais corria, mais partes suas se perdiam entre os dentes, entre as bocas. Até que se calou, no silêncio, no escuro...


Abriu os olhos.
Sentia-se confuso e estranho, a luz lhe incomodava e a cabeça latejava de dor, mas também sentia um vigor novo se espalhando pelo corpo. A força novamente lhe voltava.
- Makra – chamou o doutor.
Ela se aproximou e os dois o fitaram, esperando alguma palavra. Olhos verdes e tristes que pareciam perdidos, mas havia algo por trás do verde...
- Você pode nos entender? – perguntou o doutor.
Aquela língua não lhe pareceu estranha, apesar de não conseguir lembrar de onde a conhecia. Onde estava? O que tinha acontecido? Queria perguntar, tentou falar, mas uma dor poderosa lhe tomou a cabeça, a boca, o corpo. Os olhos marejaram.
- Acho que ele não consegue falar. – disse Makra.
- Você está entre amigos, ouvimos seu pedido de socorro e viemos lhe ajudar. – disse o doutor Lúman.
- Dê-lhe um relaxante muscular. – falou Kália.
Lúman aplicou uma espécie de pomada na mão de Tibur e um formigamento, seguido de uma leve ardência tomou rapidamente seu braço e logo em seguida toda a dor sumiu, ficou apenas uma gostosa sensação fria. Então, Kália falou:
- Você pode falar nossa língua, eu introduzi um pequeno chip no seu cérebro contendo todos os dados referentes a ela, é só relaxar... – ele pareceu assentir. – Precisamos de sua ajuda. Nós não conseguimos sair do planeta e há algo muito estranho aqui, você sabe, não?
Ele acenou com a cabeça afirmativamente. Olhava para Kália e lhe vinham as imagens do sonho. Era a mesma mulher.
- Precisamos partir antes que essa coisa nos ataque, mas nosso reator não tem força.
Sentia nas suas palavras o temor, os olhos de um negro profundo imperscrutáveis. Era ela a mulher do sonho, mas quem era ela? O que significava aquilo?
- Você sabe como sair?
- Não há como sair. – falou enfim, e as palavras saíram facilmente, mas sua voz... tinha um tom de cinismo, bem lá no fundo, como se sentisse prazer em toda aquela situação. Assustou-se, mas ninguém mais pareceu perceber...
- Você tem certeza?
Seu maxilar estava tenso.
- Só há uma forma. – ele falou, ainda confuso com o que ouvia, o som, talvez muito mais as sensações que ninguém mais via, mas que ele percebia e estranhava. O que tinha acontecido?...havia uma mistura. Era ele e não era ele.
- Qual? – Continuou Kália.
- Vencer a outra força.
- O que é essa força? E como podemos vence-la?
Ele sentou-se e respirou fundo. Mas a boca se abriu e despejou as palavras, não era ele. Quis avisar, mas não conseguiu...
- É um ser inteligente... divide-se em moléculas e se mistura com o que ele quiser, consome e transforma tudo nele mesmo.
Todos ficaram calados.
- Nas minhas pesquisas eu não consegui destruí-lo. Ele se alimenta de energia, por isso seu reator está sem força. Em pouco tempo ele começará a atacar a própria nave. Destrói, desmaterializa, absorve tudo.
- Não há nada que possamos fazer? – perguntou Makra, se dirigindo a Kália. – Só esperar e morrer? Esperar que aconteça a mesma coisa que aconteceu na nave dele?
- Talvez haja uma saída. – continuou Tibur. Era ele, mas havia duas intenções. Como um jogo, ele não tinha todo o controle, mas também conseguia manipular as peças e as palavras. Algumas vezes o outro tomava a frente.
- Diga!
- Imagine uma disputa de luz e sombra, a sombra se finge de luz para contamina-la e destruí-la. Se ela pode fazer isso, talvez haja uma forma de fazer o contrário. – Ouvia outras vozes, um murmurinho, parecia uma multidão. Que jogo era esse?...
- Como? – quis saber Kália.
- Não sei, é só uma intuição.
- Você pode caminhar?
Ele assentiu, ficando de pé.
- Venha comigo a sala de comando, quero lhe mostrar algo.
Saíram do laboratório.
- Como você se chama? – ela perguntou.
- Meu nome é Tibur Soroia Haranah, mas pode me chamar Tibur. O que aconteceu com a minha nave? – no momento em que perguntou viu a cena, também sentiu o gosto...o pavor lhe tomou o coração. No verde dos seus olhos a sombra se mesclava.
- Tibur?. De onde você é?
- Letoh. Conhece? – era uma voz insidiosa.
- Não.
- Infelizmente não existe mais, explodiu quando o nosso sol se apagou.
- Eu sinto muito. Eu me chamo Kália, comandante Kália. Aqueles dois lá atrás são Makra e Lúman e ali, junto ao computador de bordo, está Zauibba, nosso navegador.
- Mas o que aconteceu na nave? – por que ele queria saber?
- Eu e mais dois fomos na sua nave procurá-lo. Havia...algo lá, era uma espécie de parasita, isso que você falou. Resolvi atirar com o desintegrador para destruí-lo. Nós três atiramos juntos, mas ao invés de desintegrá-lo ele ficou mais poderoso e matou meus dois companheiros.
- Entendo...
- Agora também entendo porque o desintegrador fez um efeito contrário. Afinal são forças idênticas, não?! O parasita também é um desmaterializador. O disparo deve tê-lo fortalecido. Veja. – Kália apontou na tela do computador os pontos vermelhos. – Os nossos disparos fizeram ele se expandir incrivelmente, as placas de rocha do planeta estão em movimento, parece que tudo está prestes a entrar em ebulição. Onde você acha que é o centro desse ser? Onde poderemos atacá-lo?
- Você não entendeu. Tudo que você vê aqui é ele.
Kália sentou-se. Pensou, não havia saída.
- Tudo?
- Tem alguma coisa lá fora! – Zauibba chamou a atenção. – São milhares de pontos.
- Aproxime. – disse Kália, se levantando.
A imagem aproximou-se de um dos pontos vermelhos. Era um corpo.
- São pessoas! – Disse Zauibba.
- Não, não são pessoas. – Kália e Zauibba olharam para Tibur sem entender.
- Kália?! – soou no comunicador de longa distância que estava na cintura de Kália. Ela ficou paralisada.
- O que foi? – quis saber Tibur.
- É a voz de Carbain, meu imediato. Ele morreu na sua nave.
Doutor Lúman falou no intercomunicador.
- Por favor, comandante! Venha aqui imediatamente! – sua voz estava alterada.
- Lúman?!
Silêncio. Kália olhou para Tibur e o chamou.
- Zauibba fique ai, qualquer coisa me avise.
- Pode deixar.
O laboratório ficava no extremo oposto da nave, os dois correram.
O corpo dele estava ficando cada vez mais frio, cenas sangrentas explodiam em toda parte de sua mente. Ele corria, o outro corria, os dois corriam como um só. Tibur já não sabia mais quem era quem. E tinha que fazer uma força tremenda para que uma ansiedade violenta não aflorasse, era dor, a dor real de uma tensão física poderosa, como lutar com um animal selvagem, de um instinto irrefreado. E apesar de toda dor ele só dominava a violência, mas o animal dominava a situação.

- Btzere esteve aqui. – disse um Lúman, completamente alterado. – disse que todos nós vamos morrer.
- Você o viu.
- Vi.
- E como ele estava?
- Era...frio...eu me aproximei, não sei o que me deu, não sei por que fiz isso. Quando toquei nele, eu não consegui agüentar. Ele sorriu para mim, depois desapareceu, era como se fosse pó. Tive medo, um medo que eu nunca senti igual....você entende. Não foi porque ele sumiu, foi o que eu vi...
- E o que você viu? – perguntou Tibur.
- Nada... um vazio oco, nem ar...
- Onde está Makra.
- Não sei...Não a vi... Saiu...
Um grito veio do compartimento de máquinas. Tibur e Kália correram em sua direção. Enquanto corriam, Kália se comunicou com Zauibba e pediu para que ele pegasse o doutor e o levasse a sala de comando. Quando chegaram lá, viram Makra no chão. Kália quis se aproximar, mas Tibur lhe impediu mostrando um filete de sangue que lhe escorria pelo cabelo.
Ele já sabia de tudo, mas porque continuava o jogo se era muito mais poderoso?
O sangue começou a se espalhar e desaparecia pelo chão, como se fosse sugado. Mãos se materializaram e começaram a puxar o corpo de Makra como se ele pudesse atravessar o metal. Ela gritava enquanto elas a rasgavam e realmente desmanchavam sua carne que desaparecia pelo chão.
Kália fechou a casa de máquinas e puxou Tibur pela mão. Corria apressadamente e falava para si mesma:
- Temos que sair. Temos que sair. Tem que haver uma solução.
Ver aquela cena o desnorteou ainda mais, perdeu o controle, se sentia mais estranho...confuso...como se os olhos fossem se apagando. Durante o que acontecia a Makra no chão, quis beijar Kália, fazer amor com ela ali mesmo, e agora ela lhe segurando a mão..uma sensação de poder foi lhe possuindo. O ‘outro’ aflorou aos olhos e segurou forte a mão dela e a parou.
Ela ficou olhando para ele, sem entender. Então, ele a puxou para si e sem que ela tivesse tempo de lhe dizer algo a beijou na boca e espremeu seu corpo contra o seu, quase como se quisesse parti-la.
Ela deixou que a voracidade dele suavizasse um pouco a pressão que fazia e assim que pode soltou-se, lhe dando um vigoroso soco no rosto. Tibur parou aturdido. Ódio lhe fez cerrar os punhos, quis matá-la. Mas dominou a força que o possuía.
- O que você estava fazendo?
- Não sei... – falou contido, para que ela não percebesse o que se passava por dentro.
Kália se aproximou e tocou na esta de Tibur.
- Você está queimando de febre. Vamos, temos que voltar a sala de comando.
Ela caminhava e pensava, primeiro foi Btzere e Carbain, agora Makra...aquilo tudo era impensado, um pesadelo qualquer...lembrava-se do dia em que tinham se conhecido, das várias missões juntos. Era melhor fechar os olhos e escolher as cegas quem iria morrer. Já não agüentava mais, anos e anos de guerra e agora essa coisa que os ia destruindo, sem lhes dar nenhuma chance de defesa. Quando tudo isso ia acabar?...quando poderia chorar, queria chorar, mas não tinha tempo...e esse homem estranho, o que acontecia com ele? Quem era ele? Será que realmente era alguém que podia confiar?
Na sala de comando Zauibba e Lúman estavam irrequietos.
- O que aconteceu com Makra?
- Está morta.
- Essa coisa entrou aqui dentro e pegou um de nós. Estamos todos perdidos! Ela pode fazer o que quiser. – Agora era Zauibba que se descontrolava.
- Zauibba! – Falou Kália, firmemente. – Não podemos perder a cabeça, temos que nos manter calmos. Deve haver alguma solução.
Tibur estava em silêncio. Tudo estava em silêncio. A ansiedade tinha se calado, a violência sumira, mas as sensações ainda eram contraditórias. Sentia muita dor, que começava a subir do abdômen para a região torácica. Lembrou-se do sonho, o que acontecera com ele e Kália no corredor, o sangue, a arma!.
- A Arma!
- O que você falou? – Perguntou Kália.
- Você...quando atirou...aumentou a força dele, não foi? – falava com dificuldade, como se lhe faltasse ar para respirar.
- Foi.
- Talvez se mudarmos o mecanismo da arma, criando um campo de energia que condense a matéria ao invés de desmaterializá-la...
- Isso é possível? – quis saber Lúman.
- Acho que é possível! – Falou Zauibba.
- Você conhece o mecanismo? –perguntou Kália a Zauibba.
- Não, mas a gente tenta. Vou buscá-las. – e saiu apressado.
Kália olhou para Tibur vendo seu corpo retesado, olhos sanguíneos, o suor que lhe escorria do rosto e um cheiro ácido que começava a exalar. O que está acontecendo com ele? Parece que está preste a explodir.
- Tibur, o que você esta sentindo? – Kália se aproximou tocando-lhe os cabelos e sentiu uma onda fria, como uma pequena descarga, percorrer-lhe o corpo.
- Muita dor, não consigo pensar direito... Kália! Estou contaminado, alguma coisa dentro de mim, não quer sair daqui, eu estou lutando...aqui dentro.... – apontou para o peito.
- Pronto. – Zauibba despejou cinco armas na mesa de comando, juntamente com uma maleta de ferramentas e começou a desmontá-las.
- Lúman, você sabe mexer nessas armas? – perguntou Zauibba.
- Não, eu mal sei manuseá-las.
- Então reze. Precisamos de toda ajuda. Aqui está o dispositivo dela. – mostrou para Tibur.
Tibur olhou para o mecanismo e o pegou entre as mãos. Ele não sabia como, mas conhecia o e sabia o que fazer.
- Quem está me chamando?
Os três olharam para Lúman.
- Ninguém lhe chamou Lúman. – disse Kália que até então não tirara os olhos de Tibur.
- Vocês não estão ouvindo? Alguém está me chamando. Quem é? Deixe-me em paz. Pare! Pare! O quê? É mentira, é mentira. Não!
- Lúman não é ninguém. – Kália tentou segura-lo. Mas ele se debatia, puxando os cabelos.
- Lúman se acalme. – Zauibba tentou prendê-lo.
Kália e Zauibba o seguravam, enquanto Tibur rapidamente montava o quebra cabeça das peças. Ele ouvia a voz que falava com Lúman e ela começou a lhe tomar. Não sabia se conseguiria suportar dessa vez, por isso correu. Evocou a parte silenciosa para que fizessem juntos o que quer que fosse e profundamente concentrado se deixou guiar, quase às cegas, sem pensar, deixando que o fluxo do oculto agisse. Se fosse realmente o destino deles morrer ali, ele não conseguiria, mas se houvesse uma chance, ela se abriria. Acreditava nisso com todas as suas forças.
Lúman gritava desesperado e o sangue começava a sair pelos seus poros, nariz, boca, olhos.
- Está me comendo por dentro, me ajude Kália! Ajude-me Kália! KáliKaliKaliKaliiiii...
Foi rápido, ele se consumiu. Kália tentava fazer alguma coisa, mas incapaz, tomada pelo desespero de ver Lúman ser comido de dentro para fora, caiu aos prantos. Não restou nada. Aos poucos o silêncio começou novamente a tomar conta da nave.
- Por que ele não mata todos nós de uma vez? – perguntou Kália.
- Ele se diverte, comandante, ele se diverte muito.
Dizendo isso Tibur se levantou levando consigo os vários mecanismos que havia juntado.
- O que você vai fazer? – quis saber Zauibba.
- Não sei se isso vai funcionar, mas é preciso estar lá fora. E é melhor que eu vá.
- Eu vou com você. – disse Kália.
- Não! Se funcionar, vocês podem partir.
- Negativo. – Disse Zauibba. - ou vamos todos ou morremos todos.
- Então...
Abriram a porta e havia uma suave bruma sobre o planeta, a escuridão lá fora pareceu entrar dentro da nave. O ar estava quente. Os pontos vermelhos, no escuro, andavam rapidamente, mas não os molestaram.
Afastaram-se um pouco da nave, pois Tibur acreditava que era preciso espaço para o que iria acontecer. Kália pensou que aquilo ainda poderia ser uma armadilha daquele estranho, mas não via saída e estava cansada. Preferiu seguir a ficar esperando. Quando já estavam longe, Tibur se afastou um pouco mais dos outros dois, abaixou-se e ligou o mecanismo que tinha feito.
Nada.
Kália o olhava, sem saber o que pensar. Afinal, não tinham muitas chances, mesmo que aquilo parecesse um suicídio ou uma cilada, qual a outra alternativa?
Ele voltou mais uma vez e mexeu de novo no mecanismo. Aos poucos vários seres foram aparecendo. Quando a bruma abaixava dava para ver um mar vermelho se deslocando ao encontro deles. Vinham do nada, monstruosos, uma vida sem vida.
Tibur ligou mais uma vez.
Nada.
Viu Lúman bem a sua frente, a boca deformada, os dentes pra fora. Os olhos luziam a escuridão, um sorriso cúmplice. Então, Tibur entendeu, era uma festa, um banquete, onde ele era o senhor e todos seus comandados esperavam apenas a ordem para se servirem do alimento. Viu a glória do exército de seres que podiam se transfigurar e deformar, consumir tudo que quisessem. Ouviu a voz do planeta:

Você é o pedaço de mim que se conserva inteiro. Eu o quero na frente do meu exército. Eu sou a sombra que se espalha por todo o universo e onde quer que você vá será reconhecido como meu principal servo, meu general, meu filho, eu.

Eles estavam muito próximos. Tibur abaixou-se mais uma vez com aquilo tudo zunindo na sua cabeça. Um poder insano. Essa força que lhe rasgava, destruindo e pervertendo tudo que sabia e prezava. Não pensou que talvez nem a máquina fosse funcionar, que tudo era mentira, apenas uma brincadeira...Fez uma força descomunal, acreditando e se aferrando a verdade daquela solução, e mais uma vez, desta rezando desesperadamente no meio da confusão de palavras, deu a ignição. Um pequeno zumbido começou a se fazer ouvir, mas já não era mais ele, já não era mais nada, já não era ninguém.
Nesse momento todos caíram sobre ele, mordendo-lhe, arranhando-lhe, arrancando nacos de carne. Lutou ainda. Eram muitos. Depois caiu de joelhos, esmurrando e se livrando de alguns, mas enquanto tirava um, mais cinco lhe atacavam. Até que caiu no chão. Um enxame lhe cobriu o corpo.
Kália e Zauibba tentavam revidar, mas era como querer bater numa miragem.
Depois de Tibur pegaram também Zauibba, eram dezenas, centenas, milhares.
Kália viu Carbain que mostrava sua língua traiçoeiramente, sibilando feito serpente. O vermelho cobriu todos muito rápido.
Quando pensou que era o fim. Ouviu-se um estampido.
Uma pequena explosão que a jogou a alguns metros a frente. Ao levantar a cabeça uma imensa bola azul tinha se formado, uma luz fria a iluminar o planeta.
Todos os pontos vermelhos foram se juntando, perdendo sua característica independente, se transformando numa imensa força monstruosa, envolvendo a bola que crescia e se fortalecia.
Kália viu Zauibba ensangüentado, arrastando um Tibur que parecia morto, tamanho era o número de ferimentos.
Eles subiram na nave torcendo para que desse partida.
O reator completou rapidamente e eles conseguiram alçar vôo.
De longe podia se ver um sol descomunal. Talvez uma força tenha alimentado a outra, até que o vermelho se perdeu e desapareceu na luz e a luz se desintegrou, numa explosão sem som. Silenciosamente. Espalhando seus raios pelo universo, numa visão maravilhosa.
Kália e Zauibba cuidaram dos ferimentos de Tibur, conseguindo salvar-lhe a vida, mas seu estado ainda era grave e ele não voltou a si. Sua febre continuava alta.
A comandante lembrou do que ele disse, de estar lutando dentro de si, de estar contaminado...
Fez uma análise molecular de sua estrutura e descobriu que ele não estava se desintegrando, era outra coisa. “Se estiver contaminado com aquela força maligna, algo diferente irá acontecer nele. Existem realmente duas estruturas dentro dele que estão se misturando rapidamente formando uma terceira. Há uma metamorfose em curso. E além disso, no seu coração, há uma impressionante fonte de energia, que eu tampouco consegui penetrar”, escreveu a comandante no seu relatório.
Zauibba colocou a nave no curso. O passo daquele planeta havia duplicado a distância deles para o comboio. Eles resolvem colocar a nave numa velocidade atemporal. Viajar fora do tempo era uma manobra arriscada, mas a única solução. Não só o tempo de encontro com o comboio estava esgotando como Tibur necessitava de cuidados que nenhum deles sabia dar.
As câmaras criogênicas foram preparadas, pois muitos tinham a sua lucidez afetada ao permanecer em vigília durante a viagem. Os tripulantes seriam acordados pelo comboio.
Kália colocou Tibur na câmara, torcendo para que ele consiguir sobreviver, enquanto Zauibba programou a nave. Seria apenas o sono de um dia, mas tudo podia acontecer no espaço...
A comandante teve um sonho.
A nave estava coberta numa bruma fosforescente. Ela e Zauibba dormiam nas câmaras, mas Tibur não estava na sua. Ele estava na sala de triagem, deitado numa cama de pedra e com homens de branco ao redor dele, que examinavam seu corpo enquanto cantavam uma música muita terna, mas que ela não conseguia entender. De repente os homens se curvaram e uma linda mulher apareceu. Tudo se inundou de perfume, a música permanecia, mas todos estavam calados. Ela estava ao lado de Tibur e lhe acariciava o rosto. Olhou para Kália e sorriu, não disse nada.


Parte II

Tibur

Uma parte de mim continuava em silêncio, como se aguardasse a direção que eu iria tomar. Por mais que eu perguntasse e rezasse por uma orientação, a única resposta era o silêncio, um silêncio tão escuro e profundo como todo o universo que me rodeava.
Resolvi ligar o comunicador e enviei pedidos de socorro em todas as línguas armazenadas na memória de Shian, o computador de bordo da nave, esse que parecia ser minha única companhia de agora em diante. Eu tinha que esperar e torcer, para que alguém, em algum lugar, ouvisse o meu chamado.
Com a explosão de Letoh, minha velha nave foi arremessada para uma parte do espaço desconhecida de todos os sistemas de navegação que eu possuía. Certamente estava entregue inteiramente a Vontade do Supremo e deveria agradece-Lo, por ter sobrevivido à explosão. Ainda que houvesse pequenas avarias, a nave tinha resistido.

Os dias passavam lentamente, na verdade, como não tinha o sol para dar a idéia de começo e fim de dia, programei Shian para seguir a mesma rotina que eu vinha obedecendo nesses últimos 20 ciclos da minha vida em Letoh. Ele era minha única referência de tempo, me acordava, no que seriam as primeiras horas da manhã, quando uma luz tênue começaria a se fazer presente em todo o planeta e me alertava para o passar das horas, seguindo o percurso imaginário do sol no firmamento de Letoh. Era como se eu ainda estivesse em casa.
Diminui a minha dieta alimentar, só respeitando a refeição da metade do dia, a base de grãos e balanceando-a de dois em dois dias com salm, o suco regulador da energia vibracional, utilizado sempre que se estava na ausência do sol que era o regulador natural dessa força anímica. Ainda que os Mestres houvessem me dito que eu tinha sido criado para suportar a ausência do sol, e conseqüentemente também do salm, os testes sempre acusaram uma queda vertiginosa do meu ânimo. Era alguma disfunção que Haranah, minha mãe, sempre disse que eu deveria transcender, mas em todas as vezes que tentara a abstinência, era acometido de profunda depressão, com terríveis alucinações e pesadelos. Agora, o salm era minha única fonte de energia vibracional e infelizmente, o meu estoque era limitado.


Foi preciso quase um mês inteiro para que a nave pudesse estar a toda força. Cuidar dos reparos manteve-me ocupado o suficiente, para não pensar na precariedade de minha situação. Resolvi chamar a nave de Letoh, afinal, tudo que restava do planeta estava ali. Na estufa inúmeras plantas, mudas das mais variadas espécies, também embriões genéticos da fauna e flora de Letoh que eu poderia recriar em laboratório, caso houvesse realmente necessidade. Livros fundamentais, onde estava toda nossa filosofia religiosa, meditações poderosas e explicações das origens de todas as forças existentes e pensadas. Também havia tratados e estudos científicos cruciais, para quem quisesse entender um pouco da vida de nosso planeta. Escritos milenares de tantos corações iluminados que viveram em Letoh.
Tendo em vista que por mais que eu estudasse os livros e os mapas cartográficos, não conseguia encontrar nada que se parecesse com o universo que nós estávamos atravessando, comecei a ler e pesquisar tudo que havia na biblioteca sobre portais dimensionais e aspectos relacionados a sistemas de outras dimensões, prováveis leis e organizações. Comecei a desconfiar que talvez estivesse noutra dimensão.
Passei a mapear a ordenação das estrelas, mesmo sem conseguir entender a ordem que estabeleciam. Também, não consegui identificar as órbitas dos planetas, nem quais direções às constelações tomavam. Ou esse universo era extremamente grande e por isso era-me difícil vislumbrar o seu início e término, ou talvez eu devesse olhar por um ângulo diferente, como dizia Haranah: quando as coisas parecerem não ter nenhum sentido, é porque não obedecem ao sentido que você conhece, mas tudo no Universo segue uma lei predeterminada. Você deve sair de você e se posicionar numa esfera maior, para poder enxergar além e ver qual é a Lei.

O tempo começou a passar lentamente, num estado de coisas onde tudo parece ser interminável e nada acontece. Foi quando a outra parte, que até então se mantivera silenciosa em mim, falou-me através de um sonho.
As estrelas saiam do meu corpo e giravam ao redor de mim, aos poucos, elas iam se desgarrando e se partindo em outras estrelas, se multiplicando. Para todos os lados havia mundos que foram se fundindo e se dividindo em novos mundos. Eu estava no espaço e aquilo foi tomando proporções grandiosas numa escala em espiral, com imensas galáxias girando alternadamente na força centrífuga e centrípeta, todas elas se tocando levemente e tudo girando em conjunto com galáxias mais distantes. Então pude me ver, dormindo dentro da nave, exatamente entre dois universos contrários, no ponto onde eles se encontravam. Isso explicava a incoerência das estrelas. Eu queria juntar dois universos num só.
Vi uma imensa serpente estendida como uma seta, atravessava as galáxias, traçando um caminho para a nave. A ponta de sua cauda tocava suavemente a face estrelada do oceano cósmico, causando ondas sonoras que se espalhavam, reverberando por todo o espaço. Era uma serpente que eu jamais vira igual, verde-azulada e cheia de esplendor. As escamas eram constelações que enfeitavam sua pele translúcida. Da boca aberta, nascia um sem fim de estrelas, que dançavam pelo infinito, formando rios que enveredavam no espaço a perder de vista.
Faltava pouco para Letoh cruzar a serpente e eu deveria seguir o seu corpo até alcançar a cabeça, lá descobriria qual caminho tomar. Vi uma seminova de terceira grandeza reluzindo feito sol, como um imenso brilhante bem no centro da serpente. Ela me serviria de guia, a partir dela seria fácil traçar o curso que eu deveria tomar. Durante todo o sonho senti uma presença comigo, não estava em lugar algum. Guiava-me e apontava para onde olhar, me intuía.
Acordei sem conter minha ansiedade e fui em busca da seminova no espaço. Foi fácil.
O curso da nave só precisou de um pequeno ajuste. Preenchi-me daquela sensação de estar fazendo a coisa certa, na hora certa, seguindo o traçado do destino.

Já havíamos passado pela seminova e tudo transcorria normalmente. Eu começava a perceber a ordem por trás daquela disposição aparentemente desordenada das estrelas. Mas os planetas que eu havia descoberto até então, não demonstravam fazer nenhuma elipse em volta de qualquer das estrelas que eu catalogara, aparentemente não havia um astro centralizador nesse Sistema. Deveria existir um centro, mas eu ainda não tinha descoberto qual. Ainda envolto nesses estudos, recomecei um projeto abandonado em Letoh, descobrir uma possibilidade de reprodução genética das algas que produziam o salm. Também retomei os exercícios de concentração, foram eles que aumentaram meu nível de abstinência do salm. Passei a ingeri-lo em intervalos de quatro dias. Ainda era pouco, mas em vias das circunstâncias, eu não me atrevia dar a saltos muito ousados. Retomei também os exercícios de visualização, uma prática que sempre me auxiliava a expandir meu campo de força e, por tabela, aumentar a abstinência do salm. Nos exercícios eu precisava desenhar em minha mente toda a nave, todos os compartimentos, com o máximo de detalhes, de cores, formas, utensílios e dimensões. Foi justamente durante um desses exercícios, infelizmente o que eu vinha conseguindo maior sucesso, que Shian me alertou para um sinal emitido por um planeta, um pouco fora de nossa rota.
Era um pedido de socorro, emitido numa língua que Shian identificou como sendo Troniana. Nos arquivos os Tronianos eram descritos como seres extremamente pacíficos que viviam para adorar a natureza e tudo que nela continha, parecidos em índole e fisicamente com o meu povo.
No pedido eles informavam que a nave estava avariada e que seu suprimento de comida era escasso. Tentei estabelecer contato, mas não recebi nenhum retorno. Provavelmente já não havia mais nenhum Troniano vivo e aquele chamado continuava sendo emitido, mesmo depois de suas mortes. Shian concordou que essa possibilidade tinha 80% de chance de ser acertada, mas minha consciência não me deixou passar ao largo. No mínimo eu desligaria o sinalizador, salvando algum outro do desvio.

Não era apenas um planetóide, era grande o bastante para que sua gravidade capturasse três asteróides, lhes obrigando órbitas distintas a sua volta. Tinha um quarto do tamanho do sol de Letoh e girava numa velocidade extremamente rápida, seu passo indicava que se dirigia para a galáxia seguinte, no sentido contrário ao meu. Uma espécie desgarrada de planeta. Aquilo podia estar viajando já há incontáveis ciclos pelo universo.
Localizei a nave Troniana na sua superfície e calculei uma descida obedecendo a uma distância mínima de segurança. Queria resolver isso o mais rápido possível.
Ao entrar no campo magnético do planeta, Letoh perdeu seu equilíbrio e tivemos que despender mais força do que o normal. Devido a isso, nosso curso de aterrissagem foi ligeiramente alterado e acabamos pousando muitos metros à frente da nave Troniana.
Para não perder o controle foi preciso usar toda a força do reator e até o próprio Shian descarregou suas baterias para utiliza-las como força suplementar, o que acabou danificando parte de seu banco de dados. Felizmente, os estragos dessa vez não eram físicos, se restringiam ao sistema operacional de Shian, nada que ele mesmo não pudesse resolver.

Se parecia com um deserto.
Um planeta escuro, devido a ausência de um sol, mas não era gelado, apenas frio.
Apesar da saudável composição do ar, coloquei um traje que me imunizava de qualquer contato. Com óculos infravermelhos e um aparelho de rastreamento, sai na direção da nave Troniana, deixando Shian ocupado, reorganizando seus sistemas.
Era um lugar solitário, com imensas porções de rocha plana. Não havia crateras, o que me deixou intrigado. Um planeta assim, viajando no universo, facilmente poderia se chocar com asteróides.
Eu já havia caminhado o bastante para não ver mais Letoh, mas não conseguia enxergar nada que se parecesse com as proporções de uma nave. Nada que tivesse algum tipo de proporção, aparentemente o relevo do planeta se restringia a imensas... placas de rochas planas. Conforme os dados do rastreador, eu estava na direção certa. Talvez os problemas na aterrissagem tenham desviado Letoh além do que eu e Shian tínhamos previsto.

A nave estava mergulhada na rocha, como se a planície fosse um mar que se cristalizou após a sua queda, deixando apenas uma pequena parte de fora. Eu não consegui entender como aquilo tinha acontecido, sem nenhum sinal de destruição, sem nenhuma cratera.
Uma espécie de poeira espessa cobria a parte que estava de fora, talvez fosse algum elemento corrosivo...não sei... talvez tudo houvesse se consumido. Não havia ninguém, se houve alguém, eles já não existiam mais. No meu sinalizador ali estava uma nave, inteira, emitindo um sinal concreto. Mas não era o que eu estava vendo ali... Tudo era muito estranho...
Apanhei uma amostra daquela poeira, uma espécie de “fuligem”, e sai apressado. Algo em mim dizia que eu deveria partir urgentemente.
Outro coisa estranha aconteceu.
Eu tinha certeza de qual caminho tinha feito, havia visualizado com exatidão todas as diferenças do solo. Mesmo com os óculos infravermelhos, havia nuances muito claras para se destingir. Mas na volta, o chão não era mais o mesmo. Eu não tinha caminhado por ali, apesar de ser o mesmo percurso. Agora havia partes extremamente lisas, quase espelhadas e outras um pouco mais crespas. Na ida até a nave Troniana eu tinha visto uma formação diferente. A rocha parecia ter se movido. Aquilo começava a me intrigar. Que tipo de lugar era esse?
Ao chegar de volta a nave pedi a Shian um relatório a respeito dos consertos. Ele me disse que praticamente tudo já estava acabado, que dentro de apenas algumas poucas horas poderíamos estar alçando vôo novamente.
Fiquei um pouco mais tranqüilo com essa notícia.
Fui ao laboratório analisar o material que eu havia colhido na nave Troniana.
Era um organismo vivo, uma espécie de vírus que primeiro espelhava a cadeia molecular de qualquer coisa a que tivesse contato, até ser aceito como um igual, depois voltava a sua forma original. Assim, toda a cadeia, a qual ele se espelhara, acompanhava a mesma transmutação, mudando seu código molecular e aos poucos se desintegrando. Deve ter sido assim que tudo na nave Troniana desapareceu, só restando a parte superior, que devia estar preste a desaparecer também.
Mas isso não explicava o pedido de socorro que Shian continuava recebendo vindo daquela parte, nem os movimentos na rocha.

Não conseguimos sair do chão. Shian não encontrou o defeito. Por mais que repassássemos todos os dados, tudo parecia funcionar perfeitamente, apenas não tínhamos força.
Estávamos presos ali.
Resolvi permanecer calmo e voltei a pesquisar o material que tinha colhido.
Após assumir a estrutura molecular do seu hospedeiro, o vírus alterava seu nível de densidade. Funcionava como uma porta aberta por onde tudo escoava. Era como se ele, literalmente, comesse a matéria, absorvendo sua força e ganhando mais volume. Ele era um conjunto desconexo de interligações atômicas que mais se parecia com a antimatéria. Era o inverso da energia condensada, melhor dizendo, era o inverso da própria energia. Seu código era o próprio caos.
Na estufa algumas plantas começaram morrer, já vitimadas pelo vírus. Fiquei assustado pela rapidez, não havia completado um dia de minha aterrissagem.
Ficavam secas e intumescidas, bastava um toque para se desmancharem. A estufa foi rapidamente se tornando um monte de esculturas feitas de areia. Um cenário tristemente risível. Olhei alguns embriões e em todos já havia alguma modificação genética. Alguns haviam se esfarelado. Pensei em qual seria o efeito daquilo tudo sobre mim...
Então se passou um dia.

No segundo dia Shian começou a dar sinais de falha. Trocava as palavras e demorava mais que o habitual para me responder alguma pergunta. Perguntei-lhe se tinha idéia do que estava acontecendo e apenas me disse que se sentia muito fraco. Ele perdia energia, assim como as plantas. Sua energia era toda sugada e sua matéria estava sendo desconstruída, para que também essa energia condensada, fosse assimilidada. Comecei a entender, era assim que o planeta mantinha seu calor e sobrevivia. Criava armadilhas para que o alimento se aproximasse dele, depois o enredava e digeria lentamente.
Desliguei o sinalizador da nave, que ainda emitia o sinal de socorro, era melhor que ninguém nos encontrasse.

Terceiro dia.
Minha composição continuava a mesma, mas a nave inteira já estava tomada. Começou pela estufa, se alastrou pelo laboratório, até as partes mais isoladas. Poucas coisas não estavam contaminadas. Não havia nenhum padrão na seqüência da contaminação, em quase tudo ele tinha tocado. Apenas eu resistia, talvez me considerasse o prato principal.
Continuei tentando um meio de achar alguma espécie de antídoto. Reverter o processo de desmaterialização. Descobri que se eu injetasse energia, ou produzisse um meio próximo de calor, os organismos abandonavam o que quer que estivessem fazendo e atacavam em colônias a fonte de calor, então, a decomposição era paralisada e as moléculas do que havia sido o hospedeiro voltavam a se agrupar normalmente, assumindo sua característica primeira.
O problema é que eu não tinha nenhuma grande fonte de energia para afastá-los permanentemente. Concentrei-me em estudar uma forma de mudar a polaridade dessa força.
Se eles eram uma espécie de antimatéria... talvez fosse possível trazê-los à matéria... seria uma forma de reverter sua polaridade agressiva.

No quarto dia Shian não respondeu mais e o salm que eu vinha tentando preservar do “vírus”, mostrou-se totalmente contaminado, não consegui salvar nada. Agora eu estava definitivamente sozinho e lutando contra o tempo. Todos os dados do computador de bordo estavam perdidos, todos os embriões, toda a flora, fauna, os livros, tudo estava esfarelando, desaparecendo. Mais uma vez eu via Letoh morrer sem que eu pudesse fazer absolutamente nada. Então, coloquei a túnica azul, os cintos que identificavam o meu grau iniciático, soltei os cabelos e pus sobre eles o manto verde pintado por Haranah que me foi entregue no dia de minha Iniciação. Pus também as sandálias sagradas do Templo. Essas eram as únicas coisas que eu queria que permanecessem junto a mim.

Quinto dia.
Parei.
Tudo já estava morto.
Não havia mais motivo para continuar lutando. A única coisa que eu tinha era a mim mesmo e eu já nem podia saber se estava ou não infectado. A parte silenciosa dentro de mim continuava teimando, “continue, continue”, ela dizia. Mas eu não via mais sentido. Procurei me lembrar de todos os preceitos, de toda filosofia de Letoh, a qual eu sempre respeitei profundamente, lembrei de um ditado: quando todas as chances levam a crer que tudo vai dar errado, se tem o mesmo percentual de chances de que o contrário aconteça. Nesse dia eu apenas respirei, calma e lentamente, rezando e agradecendo pela vida, mas a falta do salm ajudava a enfraquecer meu ânimo.

Sexto dia.
Havia uma presença na nave que se expandia a partir do laboratório, a absorção dos salms parece ter lhe dado muita força. Ela cresce e me enfraquece ainda mais. Há violência nela, quer me atrair... essa força tem transformado tudo e o aspecto da nave está se tornando insuportável.
Eu estou só. Como sempre estive só durante toda a preparação para a missão. E isso sempre foi motivo de estímulo. Poder me aventurar pelo universo adentro e esperar pelas oportunidades que o Supremo me daria e construir com elas uma nova vida. Essa sensação sempre me encheu de entusiasmo, mas agora, nada disso parecia ter valor. Hoje essa atitude me pareceu infantil e pretensiosa.
Sinto falta de Letoh, de Haranah, dos Mestres e de todos os que acabei vendo morrer um a um. Eu devia ter ficado com eles e aceitado a morte com dignidade. Nunca fui a favor do suicídio, nem sou agora, mas é sábio perceber a hora certa de depositar as armas e por fim a guerra e eu nem tenho mais armas, só prolongo o inevitável.

Sétimo dia.
Abri a porta da nave e sai.
Além das vestes sacerdotais não usava mais nada, nem os óculos infravermelhos. Não precisava mais ver para onde ia. O vírus estava por toda parte, mas na nave ele se fazia mais presente, por isso afastei-me o mais que pude. A nave não existia mais, ela era a personificação do que vivia ali.
Deitei-me e olhei a profunda escuridão. Era a primeira vez que olhava para o planeta como ele realmente era.
Esse parecia ser o destino, morrer ali, e eu deveria obedecer a Deus e humildemente me deixar abater. Lembrei-me de Haranah, do Sumo Pontífice e de tudo que me haviam ensinado. Tantos anos de estudos e preparos, tanta esperança. A nossa raça estava realmente condenada para sempre, era isso que o Supremo lhes dizia e eu me senti o guerreiro teimoso lutando contra o imponderável, contra o destino. Só isso explicava eu ter vindo parar neste planeta, onde toda vida era apagada, onde as energias eram digeridas e perdiam a sua personalidade e tudo passava a ser uma só escuridão. Então, se havia tantos sinais eu deveria me entregar e parar de resistir.
Comecei a sentir o fluxo de energia se esvaindo do meu corpo. Sentia o planeta, a sua respiração e seus pensamentos que se espalhavam na confusão. Uma frieza profunda, uma espécie de ferimento aberto no coração, por onde eu começava a desaparecer. O corpo todo foi ficando mais e mais frio.
Senti os lábios de Haranah junto aos meus ouvidos. A luz que ela emanava me encheu de emoção. Pareci ouvir diretamente de sua boca: o Supremo jamais te conceberia se não tivesse uma missão maravilhosa para você.
Era tudo uma ilusão... quis lhe dizer, mas ela não estava mais ali.
Todo o planeta agora me era estranhamente familiar. Era escuridão, só escuridão. O meu corpo já não era mais meu
Fechei os olhos.



Parte I

Ogima e o predestinado



Um sono inquieto perturbava Ogima. Ele se debatia de um lado para o outro da cama até que abriu os olhos ao ouvir um grito. Continuou deitado. Sabia que o grito não era real. Ficou pensando nas visões que tinha tido no sonho. Um animal feroz o rondava. O bicho esperava o melhor momento para o ataque. Queria devorá-lo, mas quando enfim abriu a boca, um grito saltou para fora: ‘Ajude-me!’. O grito desnorteou Ogima. Então, a besta saltou sobre a garganta do velho mestre acordando-o.
Enfim, o mestre levantou-se e foi assear-se. Pouco tempo depois tocou o intercomunicador do quarto.
- Cardeal Ogima?
- Sim, comandante? – disse Ogima, com uma voz que demonstrava o cansaço de uma noite mal dormida.
- Conseguimos liberar Zauibba do vírus, mas vamos perder o outro homem. Receio que teremos que eliminá-lo.
Ogima suspirou. Temia isso.
- Comandante, pediria que não tomasse nenhuma decisão até conversarmos pessoalmente. Gostaria de ver o que foi possível fazer pelo homem que salvamos.
- Muito bem, mas não poderemos esperar muito mais tempo.
- Estarei aí dentro de instantes.
Ogima terminou de se arrumar e preferiu tomar um composto alimentar, ao invés de ingerir algo mais sólido, fez suas orações e saiu do quarto, caminhando pelos compartimentos da nave em direção a torre de comando, repassando mentalmente o que acontecera nos últimos dias.

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A nave de Kália surgiu próximo ao comboio, á deriva. Foi detectada uma presença alienígena e mais três sobreviventes que dormiam em sono criogênico: Kália, Zauibba e um estranho. Rebocaram a nave para uma zona de quarentena do comando geral e começaram um processo de desinfecção, com o objetivo de destruir a presença invasora. Após algumas investidas conseguiram limpar a nave e começar o salvamento dos três passageiros. Os graus de contaminação eram variados. O que estava em pior estado era o estranho. Quase 70% do corpo estava tomado pelo que o médico do comando, o experiente doutor Akhem, batizou de vírus negro. Um agressivo organismo alienígena que desintegrava tudo que tocava.
Havia três dias que lutavam com aquela coisa. A primeira a se restabelecer foi a tenente, que deu informações valiosas do que havia acontecido à tripulação. A luta pelo restabelecimento de Zauibba foi mais árdua. Só conseguiram libertar o homem após resolverem amputar-lhe as duas pernas. Era através delas que o vírus teimava em reincidir.
O terceiro homem, aquele a quem o cardeal tinha uma atenção especial, parecia fadado a ser destruído.

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Antes de se dirigir à torre de comando, Ogima resolveu fazer um pequeno desvio e seguiu para a zona de quarentena. Queria ver o estranho. Chegando lá, encontrou a tenente Kália olhando para o tubo onde o homem estava suspenso. Envolto num líquido que o isolava e também alimentava, o corpo flutuava.
- O corpo dele está diferente – disse Kália, antes que o cardeal dissesse algo.
Ogima olhou para o tubo e para o corpo do homem de pele branca e rosto marcado.
- Por que? – quis saber.
- A cor do cabelo, não era essa. O corpo também parece mais alongado. Se fosse possível diria que os ossos cresceram um pouco e o corpo ganhou massa muscular. O rosto também parece mais anguloso. Ogima olhou para o homem que flutuava.
- Como ele era, Kália? Como ele era como pessoa?
Ela continuou falando sem se voltar para Ogima.
- Cardeal, estive pouco tempo com ele. Mas o que posso dizer é que se não fosse por ele, eu não estaria aqui. Também não teria ido até aquele planeta, é verdade... – corrigiu ela, como se tivesse falando algo tolo.
- Você disse que o nome dele é Tibur, não foi isso? – perguntou o cardeal, não dando atenção à confusão da moça.
- Sim, foi o que ele me disse. O seu planeta chamava-se Letoh. Cardeal, o senhor já ouviu falar desse lugar? Porque tivemos que resgatá-lo?
- Há informações que ainda não posso revelar Kália. No momento certo, no momento certo... Diga-me, você confiava nele?
Ela pensou um tempo e lembrou do beijo que Tibur lhe deu. Lembrou também de sua bravura e de como ele conseguiu manter a concentração e a firmeza que possibilitou a salvação dela e de Zauibba.
- Sim confiava – disse, por fim.
Ogima se aproximou do tubo e olhou o rosto do estranho.
- Eles vão matá-lo?
- Não, ele vai sobreviver. – respondeu o sacerdote, adiantando não o resultado de sua reunião na torre de comando, mas quem venceria a luta interior travada dentro do corpo de Tibur.
Ogima tocou com a mão esquerda o tubo onde estava homem e se concentrou. Entrou mentalmente dentro do tubo, passou pela água e sentiu o corpo do homem, percebeu o vírus que avançava. Viu que o corpo havia se tornado uma prisão para o vírus, mas também para o estranho. Os dois estavam se unindo cada vez, transformando-se noutra coisa. O resultado seria que ninguém ali venceria a guerra. Resolveu ir direto ao coração, sentia ali uma força descomunal. Ogima tentou entrar, mas algo lhe impedia a passagem. Respirou fundo e concentrou-se mais, até que sentiu as batidas do coração do estranho e atravessou o tecido do órgão. Ao entrar, uma imensa luz o arrebatou. A luz o atravessou, o levou para fora do coração, do tubo, da zona de quarentena, de toda a frota estelar. A luz mergulhava a tudo dentro dela mesma. Desta forma Ogima, suavemente, foi devolvido a sua própria consciência. Quando o sacerdote abriu os olhos novamente e retirou a mão do tubo, cambaleou, e foi socorrido por Kália.
- O senhor está bem, cardeal? – perguntou a tenente.
Ele olhou para a tenente e a viu com trajes diferentes. Era outra mulher que o olhava através da tenente e lhe falava sem abrir a boca. ‘este é Tibur, o predestinado’. Ela falou mais alguma coisa, mas Ogima não conseguiu entender o resto.
- Cardeal? – chamou Kália e a visão se dissipou.
Ogima apoiou-se em Kália pensando em qual era a missão daquele estranho e o que o ligava a ele? Porque ele sentia que deveria ajudá-lo? Lembrou-se do sonho. Talvez tudo não passasse de uma grande armadilha, pensou, mas ele precisava fazer algo.
- Cardeal, o senhor está bem? – tornou a perguntar a tenente.
- Sim, estou - Ogima se recobrou – preciso falar com o comandante – disse e saiu.
O cardeal apressou o passo até a torre de comando. Reconhecia as vestimentas da mulher que lhe apareceu na visão. A disposição das cores e o estilo da vestimenta ele só havia visto nos livros que contavam a história da criação de seu próprio planeta. Isso reforçava o significado daquele momento. Ele não poderia deixar que o estranho fosse sacrificado.
Entrou na sala de comando e viu o comandante Izakim conversando com Akhemi. Entendeu que os dois estavam juntos para convencê-lo do que achavam necessário: sacrificar o estranho, exatamente o oposto que iria pedir. Rezou silenciosamente pela presença dos deuses, e que eles estivessem do seu lado. Resolveu que o melhor que tinha a fazer era ser direto.
- Izakim, não podemos sacrificar o estranho.
Os dois o olharam, estranhando a intervenção. Foi o doutor Akhemi quem falou primeiro.
- Ogima, o homem não poderá mais ser salvo. Diferente do que aconteceu com os demais, seu corpo assimilou o organismo intruso e está em processo de mutação. Não conheço nenhuma técnica para reverter o processo, apenas o estacionamos. Não há mais nada a fazer.
- O estranho teve um processo diferente dos demais, assimilando o organismo, não foi isso? – perguntou Ogima, que obteve a afirmativa de Akhemi – Gostaria de saber se ele é um agente transmissor, como os demais ou, como desconfio, apenas um hospedeiro.
- Ele não é transmissor, mas não sabemos em que resultará a mutação. O senhor viu em laboratório, e pelos relatos da tenente, que tipo de inimigo estamos lidando. Ele é altamente letal.
- Comandante, sei que é arriscado – disse Ogima, voltando-se para Izakim - mas gostaria de ter o estranho sob minha guarda.
- Infelizmente, Ogima, eu concordo com Akhemi. Não há como manter essa ameaça viva. Ele poderia desestabilizar todo o equilíbrio da nave e até do comboio. Poderia destruir a todos nós. Acredito até que venha a ser uma ameaça plantada pelo nosso inimigo...
- Isso é um absurdo! – interrompeu Ogima - fui eu quem pediu para salvá-lo, se ele fosse uma ameaça eu jamais teria pedido uma missão de resgate.
- Sei que foi você que me pediu pessoalmente pelo salvamento e entendo suas preocupações religiosas...
- Izakim! Minhas preocupações não são só religiosas. Existem outros motivos para mantê-lo vivo.
- E quais seriam esses motivos? – quis saber Akhemi.
- Infelizmente, não posso revelá-los ainda.
- Ogima, nós nos conhecemos há muito tempo, desde criança, mas eu não posso, em favor da nossa amizade, colocar em risco a tripulação. Além do mais, desconfio que seus motivos para mantê-lo vivo não passam de conjecturas.
- Então, não me resta outra opção. Devo lembrá-lo que tenho autoridade para dar-lhe uma ordem.
O comandante retesou os músculos, visivelmente contrariado, mas exigiu:
- Sim, Sumo Sacerdote, sei que sua hierarquia é maior que a minha, mas simplesmente não posso permitir que todo um comboio seja colocado em risco por um sonho ou intuição de vossa excelência, preciso que me dê alguma garantia de que estaremos em segurança com o estranho.
Ogima percebeu a ironia e a irritação nas palavras e assumiu o mesmo tom formal.
- Acredite, Izakim, eu não lhe pediria isso e colocaria em risco nossa amizade, se não considerasse aquele homem importante. Tenho motivos para acreditar que ele é uma peça fundamental para o nosso futuro. Eu lhe pedi que enviasse uma nave de resgate porque recebi um sinal dos nossos ancestrais dizendo que alguém especial corria perigo e precisava de ajuda. Jamais colocaria em risco nossa tripulação, há não ser que fosse estritamente necessário.
- Dê-me a garantia que estaremos em segurança – continuou o comandante, impassível.
Ogima pareceu resignado.
- Quero que o instale num dos silos vazios de carga. Eu mesmo me instalarei com ele e o observarei. Quero que a mutação se conclua, mas tenha certeza, eu mesmo o matarei caso perceba alguma ameaça. Sabemos que eu posso fazer isso. Peço a você apenas que me dê algum tempo...
Izakim sabia que os altos sacerdotes tinham grandes poderes ocultos e entre esses poderes a força do extermínio, usados só em momentos extremos e que significavam um momento especialmente doloroso a quem se utilizava do poder. Ele mesmo já havia visto, ao final de um julgamento, um homem ser desintegrado pelo sumo pontífice, que caiu fortemente doente depois do incidente. Após algum tempo pensando, ele aquiesceu.
- Muito bem. Você o matará caso ele se mostre perigoso. E eu lhe dou cinco dias para apresentar um resultado positivo.
- Preciso de dez.
- Cinco é o máximo. Você terá total liberdade, mas se nesse tempo percebermos algumas coisa estranha e você não quiser destruí-lo eu mesmo me encarregarei disso. E não me importarei com sua hierarquia. Nós conversaremos no conselho.
- Obrigado Izakim.
- Não me agradeça. Você não me deu escolha.

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Akhemi não deixou que Ogima fizesse da forma como queria. O médico resolveu que iria monitorar o estranho a todo o instante, para terem certeza que ele não seria nenhuma ameaça. O mantiveram trancafiado, enquanto preparavam um dos silos do compartimento de carga para a operação. O lugar era realmente o mais indicado para qualquer situação de isolamento extrema, afinal os silos eram construídos para serem desacoplados das naves mães e abastecidos com alimentos ou qualquer outra carga. Às vezes, a nave maior ficava estacionada na órbita do planeta, enquanto um módulo descia com vários silos para serem abastecidos em algum dos planetas da federação. O formato poupava tempo e manobras complicadas.
O médico mandou preparar dois compartimentos dentro do silo, para que pudessem acompanhar o que quer que Ogima queria fazer. Chamou alguns colaboradores de confiança extrema e explicou o que estavam fazendo e como tudo era arriscado. Contou que havia sérios riscos de que todos fossem descartados pela nave mãe.
Mesmo assim, três médicos se prontificaram para a tarefa. Quando Akhemi preparou as duas salas, uma onde ficaria o estranho e outra onde toda a equipe médica seria instalada, com o mínimo do conforto para o isolamento, ele chamou o cardeal e disse que estavam prontos para a operação.
Ogima voltou a dizer – o que foi novamente ignorado por Akhemi – que a única coisa que precisava era de um espaço onde ele e o estranho pudessem ficar sozinhos e se entendessem.
- Não adianta cardeal Ogima. Essa intervenção o senhor terá que admitir – retorquiu Akhemi.
Fizeram a transferência da cápsula onde estava Tibur, que permanecia num sono profundo, para o silo número 54. A operação mobilizou soldados, médicos, engenheiros, numa verdadeira manobra de guerra. No silo, Akhemi e seus comandados se instalaram na ante sala de onde foi colocado a cápsula, enquanto Ogima entrava no pequeno cubículo preparado para ele e o estranho. Akhemi ainda quis dissuadir o cardeal, mas sem nenhum sucesso.
- Quero apenas que assim que fiquemos a sós, você suspenda a intervenção dentro do tubo e deixe que a mutação continue.
O médico concordou.

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Ogima olhou para o homem dentro da cápsula. Viu o líquido que mantinha estacionado a evolução do vírus esvaziar e a temperatura do corpo aumentar na mesma medida em que o líquido desaparecia. O efeito foi quase imediato. O corpo do estranho entrou em ebulição. Na outra sala os médicos viram que a mutação chegou ao clímax rapidamente e perceberam muito antes do estranho abrir os olhos que o estado de ausência já não existia. Todos suspenderam a respiração.
A cápsula começou a ser chutada e socada por quem estava dentro. Visivelmente furioso por ter sido trancafiado.
- Akhemi abra a cápsula – pediu Ogima.
Os médicos esperaram a ordem de Akhemi.
- Façam o que ele pede – disse Akhemi, num misto de curiosidade e apreensão.
Assim que a cápsula se abriu, saltou de dentro uma fera de rosto transfigurado. Pulou para cima de Ogima pronto para dar-lhe uma mordida, mas o cardeal foi mais rápido e a besta acabou se chocando contra uma das paredes do silo. O animal voltou a investir novamente. Andava de quatro e tinha garras afiadas nos dedos dos pés e das mãos e um corpo que era o dobro do cardeal. O bicho desferiu uma patada contra Ogima, mas teve a pata quebrada num golpe rápido. A dor foi lancinante. Mas apesar de estar com a pata sangrando e com dor, a fera manteve-se de pé. Avançou mais uma vez, agora com mais cuidado, mas o sacerdote estava atento e deu-lhe um soco entre os olhos que o desnorteou. O animal cambaleou e parou meio rosnando, meio cansado, e ficou como um bicho acuado, no canto do cubículo, visivelmente temendo a força do oponente. Neste momento, Ogima sentou-se calmamente na posição de lótus e tentou estabelecer uma comunicação. O mestre olhou nos olhos do monstro e atravessou sua retina. Os dois se olhavam fixamente.
- Tibur, Tibur? – Chamou Ogima dentro do cérebro do animal.
Não houve resposta, apenas o silêncio. Ogima continuou chamando, intensificando uma espécie de onda vibratória que parecia perguntar e vasculhar cada célula do mostro. Até que uma voz a princípio fraca, mas que com o tempo se posicionou com firmeza respondeu.
- Quem é você?
Ogima suspirou de alívio e disse:
- Meu nome é Ogima.
- Quem é Tibur? – perguntou a fera.
- Você não lembra? – quis saber o mestre, visivelmente preocupado.
- Não sei...
- De onde você vem?
- Não sei de onde vim, apenas vim.
- O nome Tibur, ao menos lhe é familiar?
- Não reconheço esse nome.
- O que você quer aqui?
- Quero viver.
- E porque me atacou?
- Você me aprisionou.
Ogima ficou em silêncio. Nada na fera demonstrava que ela estava escondendo algo. Os anos de treinamento de Ogima de observação da alma, de percepção dos odores do medo, dos cacoetes da dissimulação, técnicas de psicologia que o fizeram um grande conhecedor da da força interior que anima todos os seres lhe indicavam que estava no caminho certo. A fera não devia ser tão diferente das centenas de raça que conhecia.
- Você não precisa me temer. Não vou lhe fazer mal.
A fera o olhava silenciosamente, Ogima viu a desconfiança nos olhos da besta.
- Posso ensinar a você a lutar e se defender, você gostaria disso?
- Sim gostaria, mas porque você me ensinaria isso?
- Já disse, você não precisa me temer. Quero que você seja forte.
- Você não quer me destruir?
- Não, quero preservá-lo. Fui eu que mandei que lhe resgatassem.
- Por que?
- Não posso revelar.
Por um instante Ogima conseguiu ver um lampejo, além dos olhos da fera, algo se moveu lá dentro e ele sabia que era esse algo que estava se comunicando com ele.
- Você aceita minha proposta?
- Sim.
- Então a primeira lição será o autocontrole. Você precisa dominar a fome e o instinto.
- Eu preciso de alimento, tenho fome.
Ogima se levantou e virou-se para sair. Foi exatamente nesse momento que o bicho pulou. O cardeal já esperava o ataque, deu um salto para traz e com a lateral da mão atingiu a cabeça da fera, deixando-a desacordada.
Quando Ogima passou pela sala onde os médicos monitoravam o que estava acontecendo, viu a todos boquiabertos e disse fingindo não notar o olhar incredulidade de todos.
- Ele está com fome. Não quero que nada lhe seja servido, aconteça o que acontecer – disse isso e saiu, deixando a todos estarrecidos.
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Os dias se seguiram assim, numa queda de braço impossível da fera ganhar. Em pouco tempo o animal aprendeu a temer... e respeitar Ogima. No início a fera rugia, grunhia, aranhava as paredes e gritava. Foi através dessa privação, que o sacerdote conseguiu iniciar o processo de domesticação. Ogima pediu que a alimentação, a princípio totalmente a base de carne, fosse, gradativamente, sendo suprimida e acrescentada a proteína vegetal. Em paralelo a isso, a mutação continuava, e a cada dia ele se parecia mais e mais como um igual. Seu corpo foi perdendo os pelos e as garras, os dentes foram ficando menos serrilhados e o rosto abandonou o formato animalesco, ganhando contornos mais harmoniosos. Era inegável, o animal aprendia rápido, observava Ogima e imitava não só sua forma de agir, mas a postura e o formato físico, alterando sua forma exterior. A fisionomia no princípio alterava-se um pouco a cada dia, até que pareceu encontrar a forma considerada ideal. O que antes parecia ser um animal que andava encurvado e utilizava os membros superiores e inferiores para se locomover, se colocou de pé, ereto. No terceiro dia a evolução era incrível. A fera já começava a articular as primeiras palavras e conseguia se comportar, quando era contrariada. A empatia entre ele e Ogima era surpreendente, era quase possível falar em amizade, estabelecido em três dias intensos. Era de se compreender que o universo temporal daquele ser estava completamente alterado pela mutação como se ele estive vivendo saltos evolutivos de milhares de anos em algumas horas. A fera, que agora se parecia completamente com um homem, mas totalmente diferente do homem que chegou a nave mãe, obedecia o mestre sem questionar, quase cegamente.
Um dia o cardeal lhe perguntou se ele ainda o considerava um inimigo e se surpreendeu com a resposta:
- Não. Sei que se você quisesse me destruir já teria feito. Você me quer vivo.
- E porque você acredita que eu o quero vivo, qual seria o motivo?
Ele olhou Ogima atentamente.
- Você acredita que eu carrego alguma coisa que lhe será útil.
O cardeal sorriu:
- Não que me será útil. Será útil a todos nós, inclusive a você. E não acredito que você carregue algo que será útil, eu sei que você é esse algo. Você é uma chave preciosa, mas que só se abrirá e se tornará clara a importância no futuro.