terça-feira, 23 de novembro de 2010

Um ‘Harry Potter’ à beira do abismo

O novo filme da franquia Harry Potter mostra um mundo sombrio que tomou a realidade. Na primeira cena do longa vemos dois olhos em foco e um discurso inflamado a cerca da defesa da liberdade. É o Ministro da Magia que fala enquanto é ouvido e replicado por dezenas de jornalistas no saguão do Ministério. Não dá para não fazer um paralelo com ataques terroristas e ditaduras.

Assim começa a primeira parte do último capítulo da saga de Harry. Uma saga que vem sendo acompanhada por milhões de pessoas em todo o mundo.

Harry é um garoto que desde criança foi colocado sobre uma missão absurda – era um herói anunciado, odiado, invejado e amado, onde alguns depositavam suas maiores esperanças e outros suas desconfianças. O menino, órfão, criado por tios que o maltratavam, teve que amadurecer prematuramente e foi, sistematicamente, obrigado a enfrentar uma luta desigual contra um opositor descomunal.

A história, concebida pela escritora inglesa JK Rowling, contou durante dez anos, desde 1997, época da edição do primeiro livro, até 2007, quando foi editado o último, os sete anos da vida de Harry.

Hoje, quando chega aos cinemas a primeira parte do último livro, o mundo está transformado. Já viveu ataques terroristas, guerras insanas, crises econômicas, devastações por maremotos e terremotos. É inegável que a saga tenha sentido em sua estrutura um pouco dos ecos da realidade vivida por Rowling na vida real, ainda que os livros busquem sempre uma certa atemporalidade, assim como os filmes.

Contudo, Harry Potter reflete, antes de tudo, a clássica luta do bem contra o mal. No filme, assim como nos livros, é contada uma luta maniqueísta a princípio, mas que guarda eu seu interior vários conflitos. Afinal, o próprio Harry vive essa dicotomia ao ser um elo de ligação com o próprio mal. Uma ligação mental e energética.

Não é a primeira vez que o cinema, os quadrinhos, os livros e a história da humanidade até, ensinam que o herói necessita do vilão para realizar completamente seu potencial.

Nesse aspecto, é o mesmo que dizer que o amor e o ódio são temperaturas opostas de uma única emoção. Assim, Valdemort (Ralph Fiennes) e Harry (Daniel Radcliffe) são um ser humano partido em dois, um sendo a imagem do egoísmo exacerbado, da ganância, do desejo pelo poder, das manipulações e artimanhas do ego. O outro refletindo a entrega, a busca incansável pela pureza de intenção, o sacrifício voluntário, a doação e a defesa dos mais fracos. Não é errado entender que Valdemort e Harry são aspectos de uma mesma personalidade, despedaçada por Rowling e levada ao seu extremo.

Senão, vejamos. Os dois são órfãos, foram segregados, a seu modo, e buscam sua auto-afirmação. Com esse intuito acabam descobrindo e usando dons especiais que causam medo e devoção. O que diferencia os dois na verdade são suas escolhas e motivações. Valdemort é a realização invertida de Harry.


Neste episódio, o mundo desmorona completamente nos ombros dos três amigos, recém saídos da adolescência, mas obrigados a resolver questões internas e chamados a definir uma guerra que envolve a todos, mas na qual eles têm uma ação e importância preponderante. É interessante que a escritora tenha resolvido construir a história a partir de crianças seguindo o seu crescimento ano a ano. Era realmente uma forma de educar e incutir na mente de milhões de Harrys, Hermiones, Ronys, Lunas e Nevilles espalhados pelo mundo lições morais. Partindo da clássica lição: o mal não compensa. E avançando para lições mais complexas: qualquer tipo de totalitarismo é nefasto, a segregação e o bullyng são dolorosos, nós geramos nossos próprios monstros, que podem vir a dominar uma nação ou matar seus colegas numa tarde ensolarada de aula.

Mas voltando ao filme. Neste longa os três amigos vivem o batismo de fogo e a definição se eles estarão, ou não, a altura de vencer os desafios que foram propostos para e por eles mesmos. Mas uma metáfora de Rowling. Qualquer semelhança com deixar a vida segura e minimamente ordenada de uma escola ou faculdade e encarar o mercado e as relações de competição e exigências do mundo real, não é mera coincidência.

O mundo parece grande demais nas esperas, nos silêncios impostos durante a longa viagem de Harry, Hermione (Emma Watson) e Rony (Rupert Grint). Uma viagem sem um destino certo, onde eles apenas se escondem e procuram sem saber bem o quê, nem por onde. As paisagens são belíssimas, mas também desoladas, para dar ainda mais a idéia de quanto eles estão perdidos e sós, sem Alvo Dumbledore, os pais ou longe dos muros protegidos da A Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts. Agora é o momento daquela bifurcação onde será definido o destino e é importante saber escolher se o melhor caminho é ir pela direita ou pela esquerda.

Algumas cenas são belas. Quando Gina Wealey (Bonnie Wright) e Harry se beijam, quando, em meio uma festa de casamento, uma luz rasga o céu anunciando que uma tragédia se avizinha. Quando Hermione e Harry dançam desajeitadamente.

O pequeno curta da história das Relíquias da Morte é maravilhoso.

Mas em termos de química, é Hermione e Rony que se sobressaem e revelam os melhores momentos.

Enquanto isso, Harry vai aos poucos ganhando realmente a dimensão de um herói, em toda a sua estatura. Não que ele já não tenha demonstrado sua bravura, mas foi sempre com uma força claudicante e necessitada do auxílio e da confirmação dos que estavam a sua volta. É só neste filme que o herói desponta de fato. Numa bela cena final, num momento muito mais simbólico do que de ação, quando Harry segura o elfo Dobby nos braços. É esse fim que denuncia que Harry (e o ator Daniel Radcliffe) conseguiu chegar a altura exigida pelos desafios que se avizinham. Agora, Harry está à beira do abismo e o fundo do abismo devolve o seu olhar. É desse confronto interior que desponta a inteireza para as ações que virão...

A direção segura de David Yates, os efeitos especiais competentíssimos e atores afiados – o trio de protagonistas parece que enfim amadureceu diante das câmeras, são boas novas que têm se mantido. Há apenas uma cena complicada, o enfrentamento de Hermione e Bellatrix Lestrange, difícil não perceber as falhas da bela Emma Watson frente a Helena Bonham Carter. Esta última uma atriz tarimbada que construiu sua personagem como uma bruxa com um misto de insanidade e perversão. Faltou luta ao enfrentamento... ah, sim, talvez seja porque o filme é censura 12 anos.

Bem, agora só resta esperar pelo momento final que deverá finalizar a sagração do herói com tudo que ele tem de dor e redenção.

Um comentário:

Marcel disse...

Duas palavras: brilhante análise! Dá vontade de assistir novamente. Mas tenha a certeza, o livro é bem melhor! Meninos, eu li. Abraço Paulo.