terça-feira, 24 de agosto de 2010

O enigma delicioso do filme ‘A Origem’


O cineasta britânico Christopher Nolan (Amnésia, Insônia, Batman Begins, O Grande Truque, O Cavaleiro das Trevas) parece ser um homem em busca de respostas sobre o sentido e a origem da vida. Seus filmes vão fundo em questionamentos sobre o porquê e o quê move o homem. No seu mais novo longa, A Origem (Inception), Nolan radicaliza e investe num nicho percorrido por Blade Runner e Matrix, só para ficar na seara das ficções científicas: onde está a realidade?

Em ‘A Origem’ somos apresentados a Dom Cobb (Leonardo DiCaprio). Um ladrão sofisticado. Cobb é um ladrão que usa técnicas que parecem vir do futuro, mas o cotidiano em que ele vive não é um futuro de carros voadores ou naves espaciais, é o presente como nós o conhecemos. Ele rouba segredos de grandes magnatas enquanto estão dormindo, para isso usa uma máquina que faz com que o sonho seja compartilhado, só que apenas a vítima está inconsciente na história. A habilidade o torna um jogador no universo de espionagem internacional, ao mesmo tempo em que fugitivo no seu próprio país.

Sem poder voltar aos EUA, Cobb resolve aceitar uma empreitada encomendada por Saito (Ken Watanabe), magnata de indústria de energia. Saito quer que Cobb implante uma idéia na cabeça de Robert Fischer (Cillian Murphy) – que em breve se tornará o único herdeiro de um grande conglomerado. Fischer deve vender suas empresas, desmembrando-as, para que elas não venham a monopolizador todo o mercado de energia no planeta.

A recompensa para Cobb: retornar com segurança aos EUA. E o perigo: é preciso entrar o mais fundo possível no inconsciente para inserir a idéia. Todavia, quanto mais fundo no inconsciente, mais vulnerável os invasores ficam aos ataques do cérebro.

Para alcançar os níveis mais profundos do inconsciente os ladrões entram no sonho da vítima e o induzem a dormir dentro do sonho, construindo um sonho dentro do sonho, criando um labirinto em espiral que leva a vítima cada vez mais para dentro de níveis obscuros da consciência, para que ela passe a acreditar que a idéia nasceu dela mesma.

Contudo, há um problema que Cobb esconde de seus parceiros: ele está perdendo o controle sobre o jogo – toda vez que está dentro dos sonhos, ele recebe a visita da esposa falecida (Marion Cotillard) que tenta sabotar suas missões.

Com esses dados em mãos vamos sendo inseridos no universo de Dom Cobb e sua equipe, que aos poucos vai se acercando de Robert Fischer e montando como deve ser o sonho para que a inserção da idéia tenha sucesso.

Sem contar pontos cruciais da ficção, posso dizer que as cenas de lutas são simplesmente eletrizantes. Quando Arthur (Joseph Gordon-Levitt) luta com os ‘seguranças’ e o cenário gira, é memorável. O filme é eletrizante, com altas doses de tensão. O espectador deve ter atenção máxima, para entender como se dá o jogo, que em paralelo, expõe os conflitos existenciais de Dom Cobb, que se martiriza de culpa. Esses conflitos sim o tema central do longa.

Há também momentos engraçados, principalmente vividos por Arthur (Joseph Gordon-Levitt) e Eames (Tom Hardy, o novo Mad Max). Eames estipula desde o início um certo ar homoerótico ao seu personagem, um espécie de escroque, um vigarista, que cresce toda vez que está próximo a Arthur, como se inflasse. Em certo momento ele fala para o rapaz: ‘não tenha medo de sonhar com uma arma maior’. É interessante ver a tensão sexual entre os dois.

Há um dado que deve ser sublinhado. Ao entrar no mundo dos sonhos, o viajante deve carregar um objeto, chamado de totem. No caso de Cobb o totem é um peão de metal - o totem era da esposa, mas ele acaba tomando-o para si, após a morte dela. Para o ladrão, a única forma de saber que não está dormindo é ver o totem girar e cair quando está no mundo real, já que a gravidade é diferente no mundo do sonho.


Quem não assistiu ao filme é melhor parar por aqui


Bem, vamos ao que interessa. Dom Cobb carrega uma culpa que é crucial para entender a química interna do filme e as propostas levantadas por Nolan. Há algum tempo, Cobb fazia experiências com o mundo dos sonhos. Numa dessas experiências, ele e a esposa mergulharam no nível mais profundo – segundo o filme, à medida que entramos no mundo dos sonhos o tempo vai se dilatando, assim uma hora dormindo no nível quatro (o mais profundo) equivaleria a anos.

Eles chegam lá, num mundo onde podem construir o que bem entendem e assim vivem até envelhecer. Contudo, Cobb deseja retornar, enquanto ela prefere ficar. A esposa de Cobb descobriu algo que guarda como um segredo dentro de um cofre. Querendo retornar, Cobb abre o cofre – na cena vemos dentro do cofre apenas o peão deitado, o totem da esposa. Ele retira o peão e coloca no lugar uma idéia: Tudo é um sonho.

Após implantar essa idéia, Cobb consegue convencer a esposa a acordar. Para acordar só há uma forma, é preciso morrer naquele mundo. Ao retornar, a esposa acredita que o mundo em que vive também é irreal e seguindo a mesma lógica em busca de acordar, ela se suicida.

O filme remete a algumas discussões. A mulher que sabota a incursões de Cobb, travestida de esposa, não seria a imagem da alma, que volta e meia tenta lembrar ao seu par suas promessas? Não é segredo que a imagem do feminino dentro da psique é normalmente associada à alma. No caso, a esposa/alma lembra a Cobb suas juras: que ficaria com ela, que voltaria e que a maior das realidades está ali, no mais profundo do seu ser. Cobb se martiriza, querendo segui-la, mas está preocupado demais com um mundo de traições, intrigas e preocupações cotidianas. Mas também se auto-sabota para que faça o que acredita. Notem, no fundo Cobb acredita que há uma ação correta e tenta ir nessa direção ao permitir o conflito interior.

Outro ponto, não devemos esquecer que Nolan afirma que a esposa de Cobb descobriu um segredo, mas o segredo não é revelado, salvo quando Cobb retorna ao ‘mar do inconsciente’ para resgatar Saito. Sentado na frente do japonês, enquanto entabula uma conversa, Cobb vê o totem em forma de peão girar. A conversa continua, mas não vemos mais o totem, apenas a expressão de Cobb que vai ficando surpreso, enquanto continua a falar. Está, talvez seja a grande tirada de Nolan. Não sabemos o que Cobb vê, que lhe causa tamanha surpresa.

O filme termina com Cobb retornando aos EUA. Ele entra em casa, põe o totem para girar na mesa e vai ter com os filhos, enquanto a câmera fecha no objeto que gira sem parar. Assim, Nolan deixa várias dúvidas no ar. É possível que o espanto de Cobb enquanto conversava com Saito tenha sido ver o totem cair. É possível que o ‘mundo real’ seja agora um sonho para Cobb, ele na verdade não retornou. E é possível que tanto o inconsciente quanto o ‘mundo real’ sejam reais. Ou ainda, talvez a única realidade esteja no inconsciente, como sempre insistiu a esposa de Cobb.

Nolan construiu um filme forte, que fica na cabeça, mesmo passado muito tempo depois de deixar o cinema. Digno das imagens simbólicas do próprio inconsciente. Como o labirinto...

O filme é um jogo intricado, cheio de ação e divertimento, mas com um intuito de mexer com arquétipos e símbolos dos sonhos. É uma viajem e tanto!

Tudo isso regado a música Je Ne Regrette Rien (Eu não me arrependo de nada), que nos remete a Marion Cotillard interpretando Edit Piaf. Mas mais que isso, a música faz um pergunta dentro do filme, muito mais que uma afirmação. Qual o sentido da vida?

Quero apenas deixar claro que a idéia que tudo é um sonho está fortemente presente nas filosofias orientais e filmes como Matrix e Avatar beberam dessa fonte. A idéia também está presente na Kabalah. Segundo a Kabalah, vemos apenas 1% da realidade, o restante está oculto da nossa percepção e que é filtrada através dos cinco sentidos.

Outra coisa, os Antigos Egípcios (assim como os Hindus) diziam que todos nós estamos dormindo e sonhando com esta realidade, um sonho que é projetado pela alma. Juntando isso as idéias da Kabalah, que diz que a alma está, ou se comunica, através do inconsciente, é um passo para concluir que talvez a única realidade esteja mesmo onde esta consciência habita (ou dorme?). Assim, no final das contas, tanto a esposa quanto Cobb estavam com a razão ao afirmarem que o inconsciente é a única realidade e (a crença inicial exposta pela esposa), ao mesmo tempo, tudo é um sonho (a idéia que Cobb 'planta' na idéia da esposa)...

Mas voltando para a música (Eu não me arrependo de nada) que surge distante nas cenas do filme, como um recado longícuo dos sonhos. E você, olhando para trás, será que dá para dizer que não se arrepende? Ou é melhor se arrepender agora e mudar o curso desse rio, dessas águas, desse mar do inconsciente?...

3 comentários:

Unknown disse...

O filme é isso mesmo, Paulo: inteligente e sensacional!
Inteligente porque faz o telespectador pensar para entender toda a trama e sensacional porque prende a atenção do início ao fim.
Tenho que confessar que não queria assistir ao filme, mas depois que entrei no cinema, me senti completamente atraída pelo roteiro, fotografia e desempenho dos atores.
Vale muito a pena!

Anônimo disse...

não vi no cinema pois achei que não valia a pena, e estava enganado.
é complexo e muito bom. - o que é mais importe na vida!

Anônimo disse...

Nossa, que análise completa. Gostei.