segunda-feira, 29 de março de 2010

Scorsese volta à forma com ‘Ilha do Medo’


Durante muito tempo fui um grande fã do diretor Martin Scorsese. Essa admiração pela obra do novaiorquino do Queens surgiu com filmes como ‘Caminhos Perigosos’, ‘Taxi Driver’, ‘Touro Indomável’, ‘A Última Tentação de Cristo’, ‘Os Bons Companheiros’ e ‘A Época da Inocência’. Scorsese tem tentado reencontrar sua grande forma novamente sem conseguir o mesmo resultados dos seus grandes filmes – para mim, com altos e baixos, o período foi finalizado com ‘A Época da Inocência’, com um breve suspiro irregular em ‘Kundun’ e outro em ‘O Aviador’.

Vale ressaltar que o cineasta teve seu fundo do poço em épocas distintas, tanto é que filmou coisas pavorosas como ‘Guangues de Nova Iorque’ e ‘New York, New York’. Mas sempre mantive a fé. Qual não foi minha surpresa ao ouvir que o descendente de italianos tinha acertado a mão. Então, fui assistir o novo ‘Ilha do Medo’ com toda essa expectativa. O que não é uma boa para nenhum cineasta.

Quem acompanha as obras de Scorsese sabe de suas obsessões, tanto religiosas – ele é ex-seminarista – quanto do mundo do crime – ele e Robert De Niro viveram num bairro violento – tipo Padre Zé, Alto das Populares, Mandacarú, Renascer – num tempo em que era fácil ver um presunto esfaqueado ou baleado na porta de casa ou no meio da rua.

Bem, ‘Ilha do Medo’ é thriller psicológico, talvez o primeiro de Scorsese. Agora não consigo lembrar de nenhum outro (não vejo 'Cabo do Medo' como thriller psicológico) e por isso as obsessões do diretor caminhem por outros labirintos neste filme. Mas também estão lá. O filme começa com um barco saindo de uma neblina densa e o personagem central, Teddy Daniels (Leonardo DiCaprio) a beira de uma pia, com enjôo, afirmando para si mesmo: ‘controle-se Teddy’.

Teddy, intepretado por um DiCaprio cada vez mais encarnando com mestria seus personagens, é um policial federal que investiga o desaparecimento de um paciente num hospital psiquiátrico para assassinos, e tem como ajudante o novato Chuck Aule (Mark Ruffalo).

Essa seqüência inicial, já avisa que Scorsese irá assumir um certo tom romanceado no filme, calcado na adaptação da obra ‘Paciente 67’, de Dennis Lehane. Outra dica, é quando vemos a ilha pela primeira vez, a música de suspense vai num crescente grandiloqüente, seguindo até a entrada do hospital. Levando ao expectador a sensação que algo de muito grave acontece ali dentro.

No filme, Teddy, que guarda um trauma profundo pela perda da esposa, desconfia que os médicos realizam experiências radicais com os pacientes, envolvendo métodos ilegais e anti-éticos, algumas experiências semelhantes ao que aconteceu nos campos de concentração nazista. Enquanto busca resolver o caso do desaparecimento da paciente, Teddy tenta descobrir mais informações, mas enfrenta a resistência dos médicos em lhe fornecer detalhes do que acontece no local.

O suspense vai num crescente, num emaranhando onde Teddy começa a ter alucinações com a esposa morta e é questionado sobre sua própria sanidade. Quando um furacão deixa a ilha sem comunicação e diversos prisioneiros conseguem escapar tornando a situação ainda mais perigosa.

Com atores como Ben Kingsley (Dr. John Crawley), Emily Mortimer (Rachel Solando)
Michelle Williams (Dolores Chanal) e Max Von Sydow (Dr. Jeremiah Naehring), além dos já citados, o filme constrói um intricado jogo de gato e rato que muda a opinião do expectador a respeito dos personagens a todo instante. Quem está com a verdade e o quê de fato acontece no hospital é uma pergunta que cada expectador tem que resolver sozinho e esse é o grande trufo de Scorsese.

O filme se passa da década de 50, logo após o fim da segunda guerra mundial e o horrores do holocausto – quando milhões de pessoas, principalmente judeus, mas também homossexuais, ciganos, deficientes físicos e mentais, foram exterminados – e questiona quais os métodos para lidar com um paciente que não tem valores morais e é capaz de cometer atrocidades. Visualmente belos e instigantes, os delírios e alucinações de Teddy compõem esse jogo que é estabelecido com o expectador. Num quebra cabeça eletrizante, ainda que o suspense seja mais psicológico.

O cineasta retorna com ‘Ilha do Medo’, à grande forma e desde já coloca o filme na lista dos seus melhores.

Leia os últimos parágrafos só se tiver visto o filme

Não pude deixar de lembrar de ‘O Sexto Sentido’, nesta nova lição de Scorsese, mas com um adendo a mais. Existe uma profunda lição moral do que significa viver, e escolher viver, com a consciência de um erro fatal, aí está, mas uma vez, a obsessão religiosa e ao mesmo tempo o fascínio pelo crime de Scorsese.

No final, no filme, a escolha é uma incognita. Ficamos na dúvida se Teddy escolhe conscientemente a lobotomia por acreditar que é melhor ‘morrer como homem bom, do que viver com a consciência de um monstro’, ou escolhe a lobotomia, porque não há saída. Conhecendo Scorsese, fico com a primeira opção.

Para corroborar esta visão, é interessante analisar os pontos do longa que confirmam a construção do roteiro no sentido de libertar Teddy da paranóia, e da ilusão de que está no hospício a trabalho. Idéias propostas por Scorsese e pelo roteirista Laeta Kalogridis. Estão lá a inabilidade de Chuck com a arma, o que denuncia que ele não sabe utilizá-la. A tensão dos policiais que vigiam o hospício na chegada e na presença de Teddy, o que mostra que eles temem Teddy. A falta de interesse em procurar a desaparecida, os policiais parecem entediados na busca. Eles sabem que ela não desapareceu.

A história composta pela paciente desaparecida, uma mulher que afogou os próprios filhos, é explicado que ela criou uma ilusão por não suportar a realidade, o mesmo que o personagem vivido por DiCaprio fez. Teddy também passa a carregar fósforos, simbolizando a composição de sua própria paranóia, um incendiário que teria tocado fogo no prédio onde a esposa morava. A esposa aparece - numa cena belíssima - queimada e encharcada ao mesmo tempo, se a esposa morreu sufocada num incêndio, porque aparece molhada?. A cena em que Teddy alucina vendo a paciente que lhe pede ajuda para terminar de matar os filhos, porque ele ajudaria a matar os filhos da paciente e o que ele tem a ver com a historia dela? A cena só teria sentido se houvesse alguma relação entre as duas histórias. Também, em toda a busca pela ilha, Teddy não consegue encontrar as tais salas de experiências

Ainda é inteligente os cortes abruptos, que parecem sempre voltar na mesma cena, num momento inadequado, como se houvesse um erro de montatem. Os retornos dão outras pistas na história. Para mim, este é um dos melhores de Scorsese. O diretor mostrou que é possível entrar e ver a mente de um homem perturbado.

Nenhum comentário: