terça-feira, 30 de março de 2010

Guerra ao Terror ou Avatar?


Sei que o Oscar é a premiação que a maioria dos cineastas ‘cabeças’ não vê com bons olhos, mas não tem nenhum que não se deixaria seduzir se fosse lambido pelo prêmio. Sambemos que também há política na entrega do prêmio, assim como em qualquer decisão de jurados. Ainda mais se tiver fama e dinheiro envolvidos.

Mas quero falar aqui não do prêmio em si, mas das escolhas da Academia como um reflexo do momento do planeta. Ou pelo menos de uma parcela das cabeças pensantes que consideram o filme ‘Guerra ao Terror’ como uma expressão honesta da realidade e ‘Avatar’ apenas como uma fantasia milionária e infantil, feita para ganhar dinheiro. Há verdades e mentiras aí.

Para ilustrar a mente estreita de alguns críticos cinematográficos, de alguns intelectuais, jornalistas, gente que gosta de fazer a cabeça de outras pessoas, vou transcrever parte da resenha feita pelo pernambucano Luiz Felipe Pondé, escrita para a Folha.

O filme ‘Avatar’ acaba sufocado por um tipo de besteirol que é seu romantismo para idiotas: a fé no povo da floresta que vive em harmonia com a natureza. Nenhum povo vive em harmonia com a natureza. A diferença na relação com a natureza sempre se definiu pela maior ou menor capacidade técnica de cada cultura em controlá-la. (...) Preste atenção: a relação com a natureza é de vida ou morte, ou ela ou nós. A expressão "lei da selva" não foi inventada pela avenida Paulista e seus bancos, mas sim como descrição da natureza e seu horror. (...) Em "Avatar", o romantismo degenera em conversa de retardado. (...) No filme os humanos gananciosos não são capazes de perceber como os Na'vi são seres em contato com a deusa cósmica.

O personagem humano principal é paraplégico, mas ao se tornar um Na'vi recupera as pernas: eis a metáfora da condição humana vista pelas lentes do romantismo degenerado. Somos uns aleijados em comparação aos belos índios místicos donos da verdade cósmica. E qual é essa verdade? Que a natureza é um grande cérebro pensante e que devemos nos dobrar a ela porque assim a vida será bela. Meu Deus, como ter paciência com esses aleijados mentais? Ninguém leu Darwin? Ninguém nunca observou a natureza de perto? Nunca sentiu o odor de sua violência?
”.

Creio que o moço anda meio perdido no na ironia cáustica do falecido Paulo Francis, quem sabe não está possuído pelo seu fantasma.

Ainda que ‘Guerra ao Terror’ seja um filme anti-belicista, ele também pode ser encarado (e duvido muito que os nossos irmãos norte-americanos não tenham visto apenas isso) como a heróica intervenção dos EUA e seus bravos soldados num país terceiro-mundista com uma cultura incompreensível. O filme fala da degeneração da resposta dada pelos Estados Unidos no pós 11 de setembro. Uma degeneração que compreende o país invadido, o invasor e seus soldados. Mas esse filme é apenas um naco de realidade, uma pequena parte de uma realidade que envolve uma história muito maior, por isso o filme pode se perder com o passar dos anos e tornar-se apenas a história do heroísmo e da loucura da guerra.

Avatar’ não fala de um presente degenerado, mas fala de um futuro tristemente melancólico. É apocalíptico? Sim, e mexe que essa parte irracional do fim do mundo, como 2012. Toca em idéias incrivelmente em voga no momento e que foram resgatadas de culturas antigas, algumas indígenas, gregas, hindus, egípcias e até chinesas? É verdade. É romântico? Também, porque trata da possibilidade de vivermos em harmonia com a natureza, sem sermos apenas parasitas no planeta.

Uma amiga minha me perguntou como fica o subsolo após a extração do petróleo e do gás. Afinal, aquilo preenchia algo antes de ser retirado do local de origem. Fica um buraco, essa é a resposta. Não digo que esse buraco influencie nos terremotos que hoje assolam o planeta, mas não vamos dizer que esses buracos não afetam em nada o equilíbrio. O nosso equilíbrio.

Mas, ao contrário do que sugere Pondé, o filme não fala da impossibilidade de uma interação sã com a natureza, mas, antes de tudo de uma forma de não destruir uma cultura, seja essa cultura humanóide, animal ou vegetal, por acreditar que essa cultura não tem nada a ensinar. O filme fala que não devemos ver num ambiente apenas o que é possível lucrar imediatamente, mas toda a biodiversidade capaz de trazer ganhos a longo prazo, que podem ser revertidos em curas de doenças e mais sabedoria para a própria humanidade.

Sei que o filme ‘Avatar’ entra claramente na lógica mercantilista como produto, um arrasa quarteirão feito por um cineasta que sabe muito bem como emocionar as platéias e ganhar dinheiro. Mas vejam bem, se há uma parte da população mundial que está temerosa com o futuro, e que começa a ter uma mentalidade ecológica, demonstra seus anseios, o mercado nada mais faz do que, oportunamente, se adiantar a essa necessidade. Mas isso não tira o mérito das idéias e das propostas do filme, que são, apesar de alguns pecados no roteiro, mais avançadas do que Guerra ao Terror, principalmente por se tratar de um filme para a massa.

Não estão ali apenas a repetição de histórias que deram certo como ‘Dança com Lobos’, ‘O Último Samurai’, ‘Pocahontas’, ‘Matrix’, ou os mitos. O filme dá certo porque trata dos medos do inconsciente e porque reflete esse próprio inconsciente. Sabe o inconsciente, aquele espaço invisível e interior que Freud entendeu que se comunica com o mundo exterior através dos símbolos.

Assim, em ‘Avatar’ vemos o exército americano composto por mercenários. Eles são os vilões, sem meias palavras. Em ‘Guerra ao Terror’ os americanos são os heróis, ainda que equivocados, são heróis. O nome Na’Vi, como diz Pondé em outra parte do seu artigo, lembra a palavra hebraica para profeta, aqueles homens que tinha uma conexão especial com o mundo invisível e podiam falar do futuro. São homens e mulheres que mantém uma comunicação especial com a natureza e olham para uma árvore como um elemento sagrado. Para um intelectual, talvez olhar para uma árvore como um elemento sagrado seja uma estultice ou uma atitude bárbara e ignorante.

Na Kabalah a árvore é um símbolo rico. Os rabis ensinam que devemos observar a dignidade da árvore. Aprender como ela vive. As árvores, normalmente, vivem e morrem em pé. Uma árvore, ao crescer, consegue se adaptar ao ambiente e espaço onde vive.

As árvores retiram o seu alimento da terra, mas avançam sobre os obstáculos em direção ao céu, em busca de luz. Elas são úteis, dão frutos, flores, sombra, servem de madeira para construção de móveis e casas e quando secas ainda são usadas como lenha para aquecer nos dias frios ou serem utilizadas no cozimento do alimento. Além desse aspecto prático, a Kabalah ainda fala do símbolo da Árvore da Vida, aquela que está expressa no corpo humano e que é descrita na Bíblia como a Árvore que guarda o segredo da vida eterna que está no centro do Paraíso.

Há uma outra analogia no filme ‘Avatar’, os antigos afirmavam que o homem perdeu sua conexão com sagrado ao afastar-se de sua própria natureza. Esse afastamento do que é natural, criou os artificialismos, também as comodidades, a tecnologia e muitas das doenças que vemos aí. O homem esqueceu como entender os sinais do seu próprio corpo, esqueceu como ler a si mesmo e agora prefere discutir o que ele vê fora de si. Entre essas coisas está a guerra no Iraque. Mas a grande questão é que o que ele acredita que é verdade, é uma ilusão.

Para mim, premiar ‘Guerra ao Terror’ em detrimento de ‘Avatar’ é uma escolha clara: preferimos a guerra, a destruição, a força. O heroísmo que avança sobre as culturas diferentes como estupradores. A ilusão dos soldados que desarmam uma bomba que está fadada a explodir.

Podem me dizer: não a Academia premiou a mulher e o filme independente. Dizer que ‘Avatar’ é uma colcha de retalhos sem nada de novo, é um filme puramente comercial. Tá jóia, essa é a resposta superficial. As respostas não são fáceis de dar, simplesmente porque não tem manual. Às vezes é preciso sair da briga tola contra o mercado e admitir que algumas pessoas podem usar o mercado para dizer coisas corajosas, ainda que pareçam tolas e outras podem ir contra o mercado e serem aplaudidas porque dizem coisas pertinentes. Mas no fundo, essas coisas ‘pertinentes’ não acrescentarão nada, apenas servirão à satisfação estética e intelectual que, me desculpem alguns por generalizar, podem ser sinônimo para o vazio torturante.

É preciso olhar, ver e fazer leituras mais profundas. O crítico da Folha vai contra o que ele considera os desejos da maioria, entusiasmada com a beleza da aventura, e prefere usar sofismas para defender seu ponto de vista. Ele ataca o romantismo do filme e acredita que a única forma de viver em harmonia com a natureza é deixá-la intocada, talvez essa seja a idéia da antiga escola romântica, com seu ‘bom selvagem’. Mas hoje, não cabe mais esse romantismo, nem o romantismo hippie. Ainda que o filme possa levar alguns a fazer, em parte, essa leitura, esse não é o ponto mais importante.

O filme diz que a harmonia com a Natureza não está na completa falta de interação, como sugere Pondé, pelo contrário, é a falta de interação que causa a desarmonia. Não podemos olhar para a natureza como uma inimiga, nem como um pote de dinheiro, mas como um outro organismo vivo, criado como um espaço de crescimento e habitação.

Essa mentalidade de dominação da natureza é uma falácia, é a mentalidade de que somos superiores. Acreditamos assim até que ela, a Natureza, resolva abrir o chão sobre nossos pés e desabar o céu sobre nossas cabeças, aí temos a dimensão de nossa vulnerabilidade e pequenez. Nessa hora a gente bota o rabo entre as pernas e entende que não tem como brigar ou se meter a ser superior com algo que nem entende.

Avatar’ ainda diz que somos os vilões. Todos. E questiona o quê é a realidade e o sonho. Podem dizer que Matrix fez esse questionamento de forma mais eficaz. Não, Matrix só raspou. Para mim ‘Avatar’ vai mais além, ele pressupõe: se há um mundo paralelo, com realidades paralelas, é bem possível que haja outros. E então, onde está a verdade?

Infelizmente, não dá para falar tudo...

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