segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

O belo e doloroso ‘O Segredo de Brokeback Moutain’

Bem, resolvi postar algumas críticas de filmes com temática gay. Vi que um público substancial tem demonstrado interesse pela crítica do filme 'Do Começo ao Fim', por isso, prometo alguns filmes mais...a começar por este.

Os lamentos de um violão acompanham um caminhão cortando um horizonte praticamente vazio. Ainda de madrugada, Ennis Del Mar (Heath Ledger) salta do automóvel. Ele está em Signal, no Wyoming, em busca de trabalho para o verão. Del Mar espera em frente ao trailer do empregador boa parte da manhã, carregando consigo apenas um saco de papel, uma jaqueta surrada e um chapéu. É um típico caubói. Ele fuma e antes de terminar o cigarro, o apaga. Guarda o restante para tragar mais tarde.

Jack Twist (Jake Gyllenhaal) chega numa caminhonete preta velha. Saí e chuta o carro que foi até ali dando explosões pelo cano de escape. Vira-se e vê Ennis meio cabisbaixo. Tenta se aproximar, mas o outro abaixa ainda mais a cabeça. Jack pára curioso e retorna um pouco. Escora-se no carro numa pose sedutora, olhando para o rapaz, perscrutando-o. Os dois não trocam nenhuma palavra. Só vamos ouvir a voz de Ennis e Jack depois de 6 minutos de começado o longa. Até então, apenas silêncio, olhares, música, sons ambientes e as indicações do que é preciso para o trabalho, ditas por Joe Aguirre (Randy Quaid), o empregador.

Foi assim que o cineasta tailandês Ang Lee nos inseriu no universo de ‘O Segredo de Brokeback Mountain’ (Brokeback Mountain/2005). Um mundo que acabou fisgando milhões de pessoas com seu drama, ganhando vários prêmios, entre eles o Leão de Veneza, o Bafta e o Globo de Ouro de melhor filme. Também ganhou o maior número de indicações ao Oscar daquele ano (oito), apesar de perder a prêmio principal para Crash, ganhou o Oscar de direção, roteiro e música. Ang Lee já havia demonstrando sua maestria incontestável com filmes como O Tigre e o Dragão, Razão e Sensibilidade e Banquete de Casamento, mas foi Brokeback que o alçou definitivamente a linha de frente da cinematografia mundial.

Essa apresentação dos dois personagens principais é perfeita. Dá pistas do quê veremos a seguir: dois homens solitários, um extremamente introspectivo e outro expansivo, que isolados numa paisagem ao mesmo tempo inóspita e paradisíaca, construirão um laço de amor e dependência que os marcará de forma quase trágica.

O roteiro, magnífico, foi feito por Diana Ossana e Larry McMurtry no final da década de 1990, adaptado do conto homônimo de Annie Proulx. A fidelidade da adaptação ao clima do conto é impressionante. Na verdade o filme consegue trazer mais luz ao romance de Ennis e Jack, do que o conto. A história concebida por Annie Proulx é muito mais contida, cheia de períodos curtos.

As interpretações de Heath Ledger e Jake Gyllenhaal seguram o filme no fio da tensão amorosa e da angústia de uma relação que em nenhum momento é plena, muito pelo contrário, é cheia de saltos no vazio e na solidão. Ledger constrói um Ennis contido, como um animal selvagem, arisco, machista, por mais absurdo que possa parecer a afirmação. O homossexual criado pelo ator australiano é intenso, extremamente viril, como se a virilidade fosse seu apoio para fugir de qualquer traço de feminilidade. É um homem rude, de diálogo mínimo, fisgado numa paixão impossível de ser negada. Esse conflito é demonstrado com maestria no jeito cada vez mais contido e monossilábico de Ennis do início ao final do filme. O rapaz só parece livre durante os dias de Brokeback e nos encontros iniciais com Jack, quando ele realmente desabrocha e brilha mais solto. Essa transmutação feia por Ledger é realmente bela.

Já Gyllenhall é o que mais se aproxima da ideia - já explorada a exaustão pelo cinema - do estereotipo de um homossexual mais feminino. Ainda que a composição de Jack Twist também consiga passar longe de qualquer ideia de um homem com trejeitos. Gyllenhall faz um personagem expansivo, igualmente apaixonado, mais muito mais consciente de suas necessidades e desejos sexuais. Mas é inegável que ele é bem menos bruto que Ennis, e por isso, na contraposição, mais delicado.

Veja o trailer:


Outro ponto alto é a trilha sonora de Gustavo Santaolalla, seus trinados melancólicos reforçam a ideia de dor e separação expressa pelo filme. Também merece menção a interpretação de Michelle Williams, fazendo Alma Beers, esposa de Ennis Del Mar. Anne Hathaway deixou a desejar como Lurren Newsome, esposa de Jack Twist.

Teoria - Uma vez ouvi uma teoria que dizia que Ennis representava o amor de um homem por outro, o que se aproximaria hoje do que chamam de Bromance - a amizade/amor entre dois homens -, enquanto Jack seria o homossexual clássico. É interessante essa ideia, já que o próprio Ennis deixa claro que não sente atração por outros homens, apenas por Jack. Em determinado momento Ennis chega a acusar Jack de tê-lo colocado numa situação de sofrimento ao despertado nele o amor. A teoria até faz sentido ao percebermos que o caubói era extremamente solitário e parece que só conseguiu estabelecer uma química com outro ser humano apenas ali, dentro do universo de cavalos, ovelhas e isolamento – uma espécie de habitat natural, diga-se. Assim, o amor por Jack funciona como a descoberta de Ennis de uma interação/alquimia quase espontânea entre pessoas com interesses e experiências semelhantes. A impressão que dá é que Ennis não acreditava que uma intimidade assim fosse possível.

Olhando por essa ótica, Brokeback questiona o quê é ser homossexual. O filme também tenta jogar luz sobre o amor quando ele desabrocha entre duas pessoas de mesmo sexo numa sociedade preconceituosa.

Todavia, olhando pela ótica de um casal gay, simplesmente, o filme é extremamente pessimista. Homofóbico até. Ele avisa: não há final feliz possível para uma relação entre dois homens, apenas dor, sofrimento, solidão, abandono...e, às vezes, até assassinato... Tudo bem, tem um ou outro momento de prazer.

Mas creio que Ang Lee queria falar apenas de como era difícil o amor entre iguais na segunda metade do século XX, de 1963 a 1980. É bom frisar que quando Ennis e Jack se encontram, ambos tem menos de 20 anos.

Mas voltando à história - No filme, os dois, Jack e Ennis, são contratados para pastorear um rebanho de ovelhas por dois meses. Ang Lee é um exímio contador de histórias e em poucos minutos ele vai montando o painel da vida dos dois protagonistas. Ennis é um homem paupérrimo, simples, órfão de pai e mãe, criado pelos irmãos mais velhos e prestes a casar com Alma Beers (Michelle Williams).

Jack é um peão que vive dos rodeios, arrancando trocados ao se sustentar em cima dos lombos dos touros, também é pobre, mas vive em melhores condições que Ennis e é muito mais esperto. Enquanto Ennis é quase unidimensional em sua brutalidade, Jack parece ter mais nuances. Ennis é um caipira, com motivações simples e diretas. Jack é descolado e tem um olhar perigoso. Parece sempre à procura de algo. Há uma espécie de abismo no olhar do moço, às vezes insondável. É impressionante como na história, Jack leva Ennis as profundezas do abismo, mudando completamente sua estrutura.


A primeira cena em que Ennis e Jack transam acontece depois de uma bebedeira. Há um momento de suspense, como se Ennis se perguntasse o que quer, até que toma uma atitude: vira Jack, o coloca de quatro e lhe penetra. A cena é dura, quase uma luta, seca, cheia de ânsia, tesão e acontece toda na penumbra... No dia seguinte Ennis sai cedo, vê uma ovelha com as entranhas devoradas por um lobo. Como uma metáfora. O lobo que rondava as ovelhas, enfim conseguiu seu intento e a devorou. Não há mais volta.

Há duas cenas no filme que são poderosas. A primeira é quando Jack e Ennis se despedem de Brokeback. Jack tenta tirar de Ennis alguma promessa de reencontro sem sucesso até que eles se despendem sem nem apertar as mãos. O carro de Jack avança pela estrada e pelo retrovisor ele vê Ennis caminhando. Quando o carro desaparece Ennis se curva, parece que está com dor, ele tenta vomitar, mas não sai nada. Então chora. Parece uma mistura de angústia e amor. A impressão é que a prostração significa não só a descoberta do amor, mas também da dor da despedida. É como se ele lutasse consigo mesmo para não correr atrás de Jack.

A outra cena acontece quase 20 anos a frente. Depois de uma discussão Jack confessa que não suporta passar muito tempo sem sexo e diz: ‘Queria saber como te deixar’. A fala deflagra uma crise de choro de Ennis que acusa Jack de tê-lo transformado uma pessoa sem raízes: ‘Não sou nada, não tenho lugar’. Os dois ensaiam um briga, mas acabam se abraçando.

A cena leva a Jack lembrar o início de tudo, em Brokeback Mountain. Jack está em pé em frente a fogueira e Ennis o agarra por trás: ‘Agora você dorme em pé como um cavalo? Minha mãe costumava dizer isso quando eu era pequeno e cantava...’ Ennis cantarola algo ao ouvido de Jack e depois sai a cavalo. É a lembrança que nos dias de Brokeback Moutain não havia medo, apenas a liberdade do amor de um pelo outro, sem amarras. Nesse momento fica claro que foi isso que conquistou Ennis e era isso que Jack buscava ao viajar 14 horas do Texas ao Wyoming.

No final, quem mais amadurece no processo realmente parece ser o caubói introspectivo idealizado por Ledjer, que acaba entendendo o significado profundo das mudanças que a vida lhe trouxe através de Jack. É bela a cena de Ennis depois de falar com a filha, enquanto olha para um poster de Brokeback e um cabide com as camisas dele e de Jack penduradas. Ele diz: 'Eu prometo, Jack'.

Parece uma promessa dita em lembrança do amor. Resta a pergunta: é a promessa de que nada mais o impedirá de viver as emoções que têm guardadas? Que não colocará mais barreiras entre o que sente e as pessoas que o amam e que ele ama? Não dá para dizer qual é a promessa de fato. Ela fica como uma incógnita. É um filme que deixa várias questões em aberto. Esse é um dos motivos que o torna tão forte.

É um filme poderoso, belo, que se afasta dos clichês e busca resumir as dificuldades de o amor entre dois homens, as impossibilidades que cercam e já cercaram essa relação, além dos profundos conflitos internos existentes. Vale ressaltar também que a relação expressa no filme entre dois caubóis casados e com filhos, projeta uma vida comum entre os homossexuais enrustidos ainda hoje - em menor escala, é claro. Uma vida dupla que era (é) profundamente infeliz.

Assim, Ennis ao não conseguir conciliar seu desejo e sua expressão social acaba destruindo ou fazendo infeliz Jack, Alma, a si mesmo e as filhas. É verdade que a escolha de Ennis é um desejo de não constrangir sua esposa e filhas, mas é, no fundo uma escolha que leva ao psicanalista, se não dele, dos que os cercam. É uma escolha que leva a palavras não ditas e emoções reprimidas. É uma escolha que no fundo é convarde e mostra a profunda falta de estrutura emocional de Ennis...

Mas tem mais, ao focar no amor, Ang Lee vai além de uma relação homoerótica, fala das relações humanas e das destruições, mágoas, frustrações que cercam os amores mal resolvidos e cercados por estúpidas regras sociais. O conto e o filme deixam uma lição: o medo apriosiona aé mesmo o amor.

Por tudo isso, recomendo.

Vídeo - matéria da TV norte-americana com entrevista com atores:

Um comentário:

Lucas Stefano disse...

~São 14 horas , e não 14 km . O Wyoming não fica a 14 km do Texas