quinta-feira, 16 de setembro de 2010

A guerra surda no campo

Estou postando matéria que fiz para a Revista Nordeste sobre o MST, Agronegócio e Agricultura Familiar

A CPI do MST escancara a luta milenar no campo pela Reforma Agrária, e a guerra travada entre o agronegócio e a Agricultura Familiar

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) é o herdeiro natural das antigas Ligas Camponesas que existiram na década de 30 e que ressurgiram com força pouco antes do golpe de 1964. Naquela época, as Ligas se alastraram a partir de Pernambuco por vários estados do país na luta pela reforma agrária, mas acabou sendo esmagado com o golpe, que destroçou vidas e fez desaparecer líderes, como mostrou o diretor Eduardo Coutinho no filme ‘Cabra Marcado para Morrer’.

A reforma agrária ficou dormitando desde então, só veio à tona quando centenas de trabalhadores rurais decidiram fundar um movimento social “camponês, autônomo, que lutasse pela terra, pela Reforma Agrária e pelas transformações sociais necessárias para o país”, explica a cartilha do MST, fundado por esses trabalhadores na cidade de Cascavel (PR). O movimento, na época, e ainda hoje, congrega posseiros, atingidos por barragens, migrantes, meeiros, pequenos agricultores. “Trabalhadores rurais sem terras, que estavam desprovidos do seu direito de produzir alimentos. Expulsos por um projeto que anunciava a “modernização” do campo quando, na verdade, estimulava o uso massivo de agrotóxicos e a mecanização, baseados em fartos (e exclusivos ao latifúndio) créditos rurais; ao mesmo tempo em que ampliavam o controle da agricultura nas mãos de grandes conglomerados agroindustriais”, continua a cartilha. Hoje, 25 anos depois da sua fundação, paira sobre o MST uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) e denúncias de mal versação do dinheiro público.

O MST se defende e acusa: a CPI foi criada para satisfazer os interesses da bancada ruralista. A proposta da Comissão foi encabeçada pelo deputado Ronaldo Caiado, também líder dos Democratas na Câmara Federal. Segundo o deputado, “os atos criminosos praticados pelo MST vão de desvio do dinheiro público a invasões de terras produtivas. A comprovação dos desvios está atestada em laudos do Tribunal de Contas da União (TCU)”, garante.

É difícil dizer quem tem razão. Analisando a ênfase dada pela mídia à destruição de uma centena de laranjais após a ocupação da Fazenda Cutrale, em São Paulo, no ano passado (2009) o ex-ministro do governo José Sarney e de Fernando Henrique Cardoso, Bresser Pereira, afirmou que o MST é uma das únicas organizações a, de fato, defender os pobres no Brasil. “Não aceito a transformação das laranjeiras em novos cordeiros imolados pela ‘fúria de militantes irracionais’.


Bresser informa que a fazenda é fruto de grilagem contestada pelo Incra, ele ainda lembra frase dita por um ativista do MST: "transformaram suco de laranja em seres humanos, como se nós tivéssemos destruído uma geração; o que o MST quis demonstrar foi que somos contra a monocultura.

“Talvez os dois argumentos não sejam suficientes para justificar a ação, mas não devemos esquecer que a lógica dos movimentos populares implica sempre algum desrespeito à lei”, argumenta. Ronaldo Caiado contesta. “Quando incendeiam propriedades, matam rebanhos, destroem propriedades, estão defendendo os pobres? Não podemos ter um quadro de impunidade para alguns. Isso aí é desobediência civil. Temos regras. Uma pessoa não pode se achar imune a qualquer coisa alegando que está fazendo pelos pobres... O cidadão pode dizer que matou, porque estava fazendo o bem? Ou achar que tal terra é devoluta e invadi-la?”, questiona o deputado. Para o Democrata, o pior de tudo é quando o movimento faz isso utilizando dinheiro público.



A bancada ruralista tenta jogar para o governo a conta das invasões, através de aportes financeiros a três Organizações Não Governamentais (ONGs) que seriam braços logísticos do Movimento. São elas a ANCA (associação nacional de Cooperação Agrícola), da Concrab (Confederação das Cooperativas de Reforma Agrária do Brasil), a Itac (Instituto Técnico de Estudos Agrários e Cooperativismo) e a Cepatec (Centro de Formação e Pesquisa Contestado). As quatro entidades teriam recebido R$ 43 milhões em convênios com o governo federal de 2003 a 2007 e mais R$ 20 milhões em doações do exterior. Além disso, no período de 2003 a 2008, entidades de trabalhadores rurais teriam recebido da União cerca de R$ 145 milhões na forma de convênios para cursos de treinamento. A oposição quer provar que essa verba tem sido desviada para financiar as invasões (o MST prefere usar o termo ocupações). O Governo Federal defende-se afirmando que cada convênio é estudado separadamente e que ao serem constatadas irregularidades eles são suspensos e não mais renovados. O MST contra-ataca lembrando que também já foram repassados para o agronegócio R$ 87 bilhões em situações até mais favoráveis.

Messilene Silva, da coordenação nacional do MST a partir de Pernambuco, ao explicar a manutenção do MST não se refere a ajuda federal. Para Silva, o Movimento se mantém com a ajuda dos próprios trabalhadores acampados e assentados e com a solidariedade da sociedade e das entidades da classe trabalhadora, que vêem na Reforma Agrária uma necessidade para o país. A verdade é que o MST realmente não tem como receber diretamente nenhum aporte federal, já que não é uma entidade instituída formalmente. “Recebemos apoio político de 40 comitês de amigos no exterior, formados por professores, pesquisadores, militantes sociais, jornalistas, que não entendem como ainda existem trabalhadores sem-terra em um país do tamanho do Brasil, e acreditam nas nossas experiências de cooperação nos assentamentos”. Sobre o porquê utilizar-se dos instrumentos das ocupações de terra, Silva explica que cerca de 80% das desapropriações, nos últimos 10 anos, foram realizadas por conta das ocupações.


“Sem ocupação de terra, não tem reforma agrária. A Constituição de 1988 determina que a propriedade deve atender a sua função social, no artigo 5º. As ocupações que acontecem desde o tempo o Brasil Colônia, são o principal instrumento dos trabalhadores rurais para que a lei seja cumprida”, pontua. Para o MST, a ocupação de terra se dá quando de um lado está uma área improdutiva e/ou abandonada e, do outro, trabalhadores sem-terra que querem trabalhar e produzir. “A reação depende da conjuntura da questão agrária, da truculência dos fazendeiros e da posição dos governos estaduais. Em alguns estados, governadores têm uma posição bastante conservadora em relação à questão agrária e aos movimentos. Em outros, os fazendeiros são extremamente violentos e organizam grupos armados de pistoleiros contra os sem-terra”, conta. Messilene não explicita, mas o Movimento também faz ocupações políticas – como quando invadiu a fazendo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso – e também pressiona para que sejam resolvidas áreas de conflito – como foi o caso da Fazenda Cutrale que está em litígio com a União.

Reforma Agrária em marcha lenta
O MST parece ter razão ao afirmar que a Reforma Agrária precisa de um empurrãozinho. “Temos famílias acampadas há seis anos”, avisa Messilene Silva. O Censo Agropecuário de 2006, divulgado neste ano, revelou que a concentração na distribuição de terras permaneceu praticamente inalterada nos últimos 20 anos, apesar de ter diminuído em 2.360 municípios (a diminuição é considerada residual). Em 2006 a área ocupada pela agricultura não familiar (incluído aí os latifúndios produtivos e improdutivos) era de 309 hectares (correspondendo a 75%) enquanto a agricultura familiar tinha apenas 18,37 hectares (24,3%). Todavia, a Agricultura Familiar respondia por 84,4% (4,3 milhões) dos estabelecimentos, enquanto a não familiar tinha 15,6% (807 mil estabelecimentos). A agricultura familiar ainda corresponde por 38% do valor bruto de produção (R$ 54 bilhões), enquanto a não familiar responde por 62% (R$ 89 bilhões). Além disso, vale ressaltar que a Agricultura Familiar é quem mais ocupa a mão-de-obra no campo. Ela foi capaz de reter 74% das ocupações, ou 12,3 milhões de pessoas, enquanto a agricultura não familiar empregou 25,6%, ou 4,2 milhões de pessoas. O Censo lembr que o número total de pessoas ocupadas na agricultura familiar em 2006 é mais de duas vezes superior ao número de ocupações geradas pela construção civil.

Para o MST, o motivo da Reforma Agrária não ter deslanchando ainda é que o governo é de composição de interesses, sob hegemonia dos bancos, das transnacionais e do agronegócio. “Temos no campo uma disputa entre dois modelos: o agronegócio e a agricultura familiar/Reforma Agrária. O governo deu prioridade ao agronegócio, que concentra terra, expulsa o homem do campo, devasta o ambiente, usa agrotóxicos que envenenam os alimentos. Já a agricultura familiar e a Reforma Agrária são mais eficientes, produzem alimentos em menor área, geram mais empregos, embora recebam menos recursos do que o agronegócio”, defende Silva. O Censo Agropecuário ainda revela que metade dos agricultores familiares no Brasil estão na região nordeste. “Essa atividade na região desempenha uma importante característica de geração de trabalho e renda, manutenção da população no campo e ainda a característica de produção de alimentos. No Nordeste a Agricultura Familiar produz a mandioca, para a farinha, tem significativa presença na criação de médios animais, como o bode, um pouco de pecuária (leite bovino) e, dependendo na região, tem produção importante do feijão”, conta o diretor de Desenvolvimento de Projetos de Assentamento, do Incra, César Oliveira. A Agricultura Familiar é a principal produtora de alimentos básicos para a população brasileira.

“A nossa principal reivindicação atualmente é a atualização dos índices de produtividade”, revela Messilene, para quem os recentes achaques da mídia e da base ruralista são uma forma de impedir essa revisão. A Constituição Federal de 1988 e a Lei Agrária, de fevereiro de 1993, assinada pelo presidente Itamar Franco, determinam que "os parâmetros, índices e indicadores que informam o conceito de produtividade serão ajustados, periodicamente, de modo a levar em conta o progresso científico e tecnológico da agricultura e o desenvolvimento regional". Os parâmetros vigentes para as desapropriações de áreas rurais têm como base dados do Censo Agrário de 1975. “Em 30 anos, a agricultura passou por mudanças tecnológicas e químicas que aumentaram a produtividade média por hectare. A atualização dos índices de produtividade da terra significa nada mais do que cumprir a Constituição Federal, que protege justamente aqueles que de fato são produtores rurais. Os proprietários rurais que produzem acima da média por região e respeitam a legislação trabalhista e ambiental não poderão ser desapropriados, assim como os pequenos e médios proprietários que possuem menos de 500 hectares, como determina a Constituição”, diz a ativista que vai mais longe: “Fizemos uma grande jornada de lutas em agosto e o governo anunciou que fará a atualização dos índices. Depois disso, o latifúndio passou a fazer um ofensiva contra o MST. Apesar da revisão ter um peso pequeno para a Reforma Agrária, o latifúndio e o agronegócio não admitem essa mudança. Por isso, criaram essa CPI contra o MST como forma de perseguição política para impedir o cumprimento da lei, que determina a atualização”.

Números do MST
Atualmente, 90 mil famílias estão acampadas (aproximadamente 400 mil pessoas), vivendo em 875 acampamentos, distribuídos em 23 Estados e no Distrito Federal, em todas as regiões do país. Levantamento da Ouvidoria Agrária, do Ministério do Desenvolvimento Agrário, estima que 230 mil famílias estavam acampadas no país em 2006. Desde o início do MST, 370 mil famílias já foram assentadas. “Isto é fruto da organização de mais de 100 cooperativas e mais de 1.900 associações em nossos assentamentos, trabalhamos de forma coletiva para produzir alimentos. Contribuímos também na construção de 96 agroindústrias, que melhoram a renda e as condições do trabalho no campo”, afirma Messilene Silva.


Dívida chega a R$ 87 bilhões

De acordo com o Ministério da Fazenda, a dívida total dos produtores do campo já estava em R$ 87 bilhões, sem contar as dívidas de custeio da safra 2007/2008 e os investimentos desde a safra 2006/07. Desse total, R$ 74 bilhões (85%) recaíam sobre o agronegócio e R$ 13,4 bilhões sobre produtores familiares. São muitas as categorias diferentes de dívidas acumuladas pelos produtores agropecuários ao longo das últimas décadas. Só em débitos antigos contratados nos idos de 1980 e 1990, a conta dos ruralistas chega a R$ 27,38 bilhões - R$ 14,43 bilhões do Programa Especial de Saneamento de Ativos (Pesa), criado em 1989 para atender devedores de mais de R$ 200 mil, com alto índice de inadimplência e rolado mais de dez vezes; R$ 10,45 bilhões dos programas Securitização 1 e 2; e cerca de R$ 2,5 bilhões de outras dívidas antigas como Programa de Revitalização do Setor Cooperativo (Recoop), Funcafé, Cacau e Prodecer 1 e 2.


O que é um Latifúndio?
Segundo o técnico do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), José Garcia Gasques, O termo latifúndio pode ter interpretações variadas. Segundo Gasques, acima de 15 módulos a propriedade já é classificada como sendo grande. A questão é que os tais 15 módulos são variáveis de acordo com a região do Brasil. “15 módulos no município de Cubati, na cidade de Santa Luzia, na Paraíba, tem um significado. Na cidade de Santa Rita (região metropolitana de João Pessoa) tem outro. O tamanho (desses 15 módulos) varia conforme o clima, a proximidade do consumidor e as condições de infraestrutura. Em média, para a região Nordeste, até 50 hectares a propriedade é considerada pequena”, frisa o técnico.

Para o diretor de Desenvolvimento de Projetos de Assentamento, do Incra, César Oliveira, as propriedades Nordestinas tem como principal atividade das cadeias produtivas a Cana-de-açúcar e a pecuária extensiva, no máximo semi-intensiva, que se comporta de forma desigual na região. “É fato que quando se pega a cadeia do leite e derivados temos uma participação majoritária da agricultura familiar de médio porte. Os grandes empreendimentos que trabalham pecuária no Nordeste praticam uma pecuária extensiva que está associada a produção de carne, com utilização de baixíssima mão de obra, baixo nível tecnológico. As grandes propriedades, excepcionalmente, trabalham com algodão”, conta Oliveira.

Algumas ilhas da Agricultura Familiar se caracterizam pela produção de frutas tropicais, principalmente as centradas no Vale do São Francisco, no Rio Grande do Norte e no vale do Açu e Apodi, no Ceará além de uma pequena parte no Piauí. Esses empreendimentos, produtores de frutas, demandam uso intensivo de mão de obra na hora do plantio, nas capinas e adução e na colheita.

Dados relevantes
A Bahia é o estado com o maior número de estabelecimentos familiares (15% do total) seguido de Minas Gerais (10%). Esses dois estados possuem também o maior número de estabelecimentos familiares (9,9 e 8,8 milhões de hectares, respectivamente).


Distribuição de número de estabelecimentos da agricultura familiar por região:

Nordeste 50%
Sul 19%
Sudeste 16%
Norte 10%
Centro Oeste 5%


Distribuição da área de estabelecimentos da agricultura familiar na região

Nordeste 35%
Norte 21%
Sul 16%
Sudeste 16%
Centro Oeste 12%

A Agricultura Familiar
Produz 87% da mandioca consumida, 70% do feijão, 46% do milho, 38% do café, 34% do arroz, 21% do trigo, 16% da soja.
Produz 58% do leite, 50% das aves, 59 dos suínos, 30% da carne bovina.

Evolução mínima:
Entre 1996 e 2006 houve apenas um pequeno aumento do número de estabelecimentos da agricultura familiar (9,9%), passou de 4,139 milhões para 4,551 milhões., enquanto isso a área ocupada diminuiu 1%. A Agricultura Familiar ampliou sua atuação em 10 anos (de 1996 a 2006), mas os números estatísticos são irrisórios. Número de estabelecimentos cresceu de 85% para 88%, a área total subiu de 31% para 32% e o número de pessoas ocupas subiu de 77% para 79%. Entre 1996 e 2006 houve crescimento do Valor Bruto de Produção da agricultura familiar a participação nacional (de 38% para 40%). O maior crescimento foi no Nordeste (11%) e no Norte (9%).

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