quinta-feira, 9 de setembro de 2010

‘Nosso Lar’, uma súplica espiritual


A câmera avança sobre as nuvens até chegar às portas de uma cidadela, depois desce chão adentro até encontrar o personagem principal, André Luiz, metido na lama de um mundo de purgação – é o Umbral. Lá, almas aparentemente confusas rememoram sem cessar suas dores e ficam aprisionadas nesse universo interior. O Umbral, descrito no filme, é quase como um mundo apocalíptico, sem água, comida, luz e mergulhado numa completa insanidade.

Assim, André Luiz começa a narrar sua história em off, desde criança até o momento em que morreu e acordou nesse mundo de trevas, onde mesmo depois de morto ainda sentia fome, medo, sede... A idéia por si só já é magnífica. É como se ouvíssemos do próprio Chico Xavier, não dá para dissociar as palavras de André Luiz com a profissão de fé de Chico, que os espíritos têm fome e sede. É como se ele dissesse: os espíritos (com certeza nem todos) mantêm um lado instintivo bem aguçado.

É desta forma que começa o filme ‘Nosso Lar’. Com transições de cenas sofisticadas, em flashbacks, vai sendo introduzida a história de André Luiz. Wagner Assis, o diretor, consegue condensar belamente toda a história do médico, um homem seco, descrente e um pai de família distante. A reconstituição de época é primorosa e realmente nos transporta para um Rio de Janeiro dos anos 20. André Luiz não é personificado como um homem mal, apenas inconsciente. Uma inconsciência construída numa vida abastada. O médico é bem sucedido, tem suas noitadas regadas a uísque e mulheres, mas também faz o bem, quando é dissuadido a isto. Não antes de demonstrar alguma resistência.


É bela uma passagem em que o médico olha para a família que se mostra feliz no jardim – os filhos, a esposa e os empregados – e o André Luiz do Umbral diz que as às vezes as trevas podem se esconder numa paisagem de uma família aparentemente feliz. É como se ele dissesse: tudo está bem na superfície, mas há algo que se esconde no interior de todos ali que torna falsa essa premissa de felicidade.

Essa visão, do pensamentos de André Luiz, deixa uma dúvida: seria o Umbral uma realidade concreta, ou apenas a descrição das trevas interiores do médico com seus tormentos e pecados? Talvez ali pulsem as imagens da mente de André Luiz, acima de tudo, antes de qualquer idéia de um pedaço concreto do mundo espiritual, talvez o Umbral seja apenas uma projeção da culpa.

André Luiz fica ali (no Umbral) um tempo incontável e só depois de proferir uma súplica, uma oração de perdão, ele consegue receber ajuda. Um homem desce para resgatá-lo. É o ministro da Regeneração, Clarêncio, que vem com Lísias e Tobias carregando uma maca. Eles acolhem André Luiz e o levam para a cidade hospital Nosso Lar. Na cidade o médico irá descobrir que foi parar no Umbral porque é considerado um suicida. Clarêncio lhe explica que os seus atos numa vida desregrada acabaram levando-o a somatização do câncer de estômago. “É o feito da ação e reação”, ele diz. Para o mundo espiritual ele poderia ter evitado a morte prematura.

Ainda que não se concorde com a idéia de que viver inconscientemente, mergulhado no orgulho, vaidade, raivas, prepotência, medos interiores, paixões e prazeres egóicos, pode levar ao surgimento de doenças e essas doenças seriam uma forma – inconsciente – de escapar desse mundo, a idéia é interessante, e assustadora.

Num outro momento André Luiz quer se comunicar com a Terra e para obter uma autorização vai até um dos ministérios – são 72 ministérios encravados numa estrela de seis pontas que é a própria cidade. Lá o atendimento é feito em duplas e antes de colocar sua questão ouve uma mulher com a mesma solicitação. O ministro Genésio, interpretado por Paulo Goulart, pergunta se a mulher tem algum bônus que possa apresentar como merecimento. Ela diz que não. André Luiz entende que é preciso merecer para alcançar algumas, digamos, graças.

Afinal, estamos falando da interseção entre encarnados e espíritos, é a graça divina vista por um outro ângulo. O médico entende que tem que trabalhar ajudando no mundo espiritual para conseguir a permissão, mas demora para perceber que não adianta trabalhar pelo propósito, mas sim ter o propósito do trabalho de doação, sem o objetivo da recompensa...o fim não justifica o meio.

No início, André Luiz percorre a cidade ciceroneado por Lísias, mas não espere para descobrir respostas do tipo: porque os espíritos ainda se alimentam? Como acontece a reencarnação? E que tipo de matéria é aquela que aparece no mundo espiritual? O foco é outro.

É possível ver que a idealização da cidade Nosso Lar é uma mistura de futurismo e sonho. Uma mistura de Shangri-la – aquela cidade do Horizonte Perdido onde ninguém envelhece, com a cidade de Padme Amidala, rainha do planeta Naboo, de Guerra nas Estrelas. A cidadela é quase a imagem de uma história de contos de fadas de reinos perfeitos. “A vida na Terra é uma cópia daqui”, diz Lísias em certo momento, revelando que o mundo espiritual adianta descobertas e uma ordem que ainda virá. Ao ouvir isso, não dá para não desejar que aquele mundo realmente desça do céu e essa sentença seja verdade, assim na terra como no céu...

Os efeitos especiais são convincentes. Mostram camas suspensas, energias que saem das mãos e do hálito dos espíritos, um ônibus que transita pelo espaço aéreo da cidade e materializações e desmaterializações de espíritos.

A trilha sonora de Phillip Glass é boa, sóbria, minimalista mesmo, como se Glass retornasse as origens do filme Koyaanisqatsi, sem o mesmo brilhantismo, é verdade. Apesar disso, a música casa completamente ao propósito do filme. Não se sobressai, mas embala a viagem. O elenco está correto. Sem grandes arroubos de interpretação – André Luiz é interpretado de forma comedida, às vezes até demais, pelo ator Renato Prieto.

Em relação ao roteiro, primeiro devo afirmar que não conheço a obra de Chico Xavier. Não sou espírita. Tenho apenas algumas noções sobre o espiritismo e, devo dizer, Wagner Assis acertou muito mais que errou ao dar explicações sobre as leis do lugar e as concepções espíritas. Faz parte da coerência interna do filme.

Com essa desculpa, alguns personagens assumem um tom professoral. Em alguns momentos fica um pouco forçado. Mas não é nada que realmente comprometa a obra. O filme também é um pouco arrastado, mas entendo que essa foi uma opção de Wagner Assis. É preciso tempo para entrar na atmosfera de Nosso Lar.

Outro aspecto criticado no filme é a menção a várias religiões na sala da governadoria. Além dessa menção, durante a cena da 2ª Guerra Mundial, há também a chegada de judeus ostentando a estrela de Davi no peito. Alguns entenderam isso como se o Espiritismo quisesse se sobressair sobre as demais religiões. Vou dizer o que entendi. O Espiritismo é, antes de ser uma religião, uma espécie de ciência que esclarece como é o mundo espiritual no plano da Terra. Um plano que não é católico, protestante, judeu, muçulmano ou espírita. Um plano espiritual que apenas é para todos. Sob esse aspecto, o ecumenismo é válido e salutar. Mas seria bom que a interpretação das várias religiões, e das crenças das pessoas a cerca das suas religiões, no plano astral, fosse melhor explicado no filme.

Bem, um lembrete: aquele que conseguir deixar de lado os defeitos e se deter mais nos feitos do diretor carioca pode ter uma experiência única: conforto. E até paz. O filme funciona como numa meditação.

Assistindo Nosso Lar lembrei-me de filmes como Manika, Paixão, Além da Vida, Um Visto Para o Céu, Noturno Indiano, Encontro Com Homens Notáveis, Muito Além do Jardim, A Última Tentação de Cristo, Kundun, K-Pax, O Fio da Navalha, Felicidade Não Se Compra, Jesus de Nazaré... tantos filmes que tratam de uma forma ou de outra sobre conceitos abstratos e ao mesmo tempo tão concretos sobre as relações humanas, nossos dissabores, dramas e redenções. Filmes que falam de uma relação sublime que vai além do mundo material e físico. Muito além da razão.

Para mim o mais importante em Nosso Lar é que ele faz uma súplica espiritual. E, por favor, não venham me dizer que um filme não pode defender uma idéia. Pode sim, vários cineastas já fizeram ou fazem isso. Nos entregam uma obra com uma idéia subjacente. A questão é o resultado, se é bom é cinema, se é ruim é propaganda. No caso de Nosso Lar, para mim é cinema num novo estágio: quase uma experiência sensorial. Podem chamar isso de auto-ajuda, eu chamo de cinema que não está preocupado em convencer, apenas em tocar.

Nosso Lar faz uma súplica: não se matem, porque viver uma vida sem sentido é o mesmo que cometer suicídio. Não se percam: porque o mundo material não é real. Não se aprisionem: todo prazer físico, mental e emocional é uma forma de aprendizado, mas também de laço, ou nó. Depende da evolução dessas relações. Fazia tempo que eu não via essa arte (o cinema) – que serve tanto ao ego - sendo usada para um propósito mais edificante. Não posso dizer que concordo com tudo, mas não posso deixar de ver a beleza no trabalho.

3 comentários:

Anônimo disse...

Paulo, concordo com tudo que escreveu. Diferentemente do crítico Maurício Sycer, blogueiro do Uol, que derrapa feio quando compara a cidade colônia espiritual Nosso Lar, como um possível projeto de Oscar Niemyer sob, segundo palavras dele, sob efeitos de uma viagem de LSD. Ridículo.
Na verdade Nosso Lar confere com o texto do livro, obra de Chico Xavier. Nos dá inclusive a consolação de que logo alí, será possível o reencontro com nossos amigos e parentes, as pessoas mais caras de nossas vidas. Afinal, espíritos são pessoas que afastaram do corpo carnal para sobreviver apenas através do corpo sutil etéreo, como nos ensina a ciência e a filosifa espírita cristã. A cidade, aí cabe lembrar, mereceria uma explicação ao telespectador, é montada sob um plano magnético, capaz de tornar possível plasmar todo o contexto que alí está, semelhante a cidades terrenas que eles dizem ser pobre imitação, porém com desenvolvimento hiper tecnológico, científico, astral, transcedendo assim, a todo e qualquer projeto cá entre nós. Lendo as obras espíritas da coleção André Luiz/Chico Xavier, é possível compreender um pouco mais. De forma que agradecemos a serenidade com que coloca sua crítica a nos convidar para reflexão maior. Parabéns! Gil Sabino - Jornalista - MKT - Recife - PE.

Anônimo disse...

O filme ficou bom, muito bom, uma super produção. Talvez do ponto de vista artístico, dramatúrgico, nao.
Mas esse nem era seu propósito, era de divulgar a doutrina espírita e passar uma mensagem de amor e esperança.
Ainda assim, lamento que tenham suprimido várias passagens do livro que ficariam ótimas no filme.
Como a da mulher assassina de crianças, com sua aura pontilhada de negro, barrada ao tentar entrar em Nosso Lar.
Ou a reflexão (muito atual) sobre a importância da água não só para a vida na terra mas também nos mundos espirituais.
Ou o episódio da velha matriarca, que relata a perseguição sofrida pelos escravos que ela mandara matar, com a absolvição do padre.
A dos encarnados em viagem astral avistados por André Luiz, com luminosa aura azul.
A das entidades maléficas trabalhando para o adoecimento do segundo marido de Zélia.
Mas ficou bom. Uma boa versão cinematográfica, embora um pouco mais light do que o livro, sem as passagens que causariam medo ou controvérsia.

Waneska Cipriano disse...

Bom dia, Paulo!
Se achar interessante, hoje é o último dia para indicar ´Nosso Lar´ ao Oscar 2011.
Enquete do Ministério da Cultura:
www.cultura.gov.br/site/2010/09/08/enquete-oscar
Um abraço e parabéns pelo Blog. Estou sempre por aqui...