terça-feira, 11 de maio de 2010

Burton reduz ‘Alice no País das Maravilhas’


Acho que quase todo mundo conhece a história de 'Alice no País das Maravilhas', a menina que cai num buraco e vai parar num mundo que de maravilhoso tem muito pouco. Na história original, escrita por Lewis Carroll, um quê de ironia perversa acompanha a menina em sua viagem e nos encontros que tem: com um coelho – que diz ‘é tarde, é tarde, é tarde até que arde’ –, um chapeleiro maluco, uma rainha de copas tirana e uma rainha branca, algo sonsa.

Alice ainda se defronta com gêmeos sádicos – a tenebrosa história das ostrinhas que aceitam um convite de um foca para passear e terminam sendo devoradas (o vídeo está no final do texto) é um exemplo da forma sem rodeios que Carroll trabalhava o sentido moral na obra. Ainda há um gato dúbio e uma lagarta que parece enviesada com ópio.

Muito se fala das alegorias na história de Carroll. O texto e o desenho animado feito pela Disney às vezes é indigesto, cheio de digressões morais e uma narrativa muitas vezes entrecortada, que lhe faz perder o ritmo. Além da falta de ritmo, a história de Alice termina abruptamente, sem um final claro, já que a menina acorda no meio da luta com a Rainha de Copas e seus súditos.

Alice é algo descuidada, as vezes ingênua demais, outras vezes tola mesmo. Na história ela é tratada como alguém metido num universo que não é o dela. Vários personagens parecem não ter paciência com a menina e desconfiam dela - talvez isso reflita a forma como muitos adultos tratam as crinças. Contudo, a pequena Alice encara tudo que lhe acontece – as maiores bizarrices – com certa naturalidade.

A história é contada como um sonho e assim como são os sonhos explora o inconsciente. Essa foi a sacada de Caroll. Como um sonho Alice viaja em meio a personagens que têm uma lógica própria. Como num sonho coisas improváveis acontecem e todas as barreiras podem ser quebradas.


Assim, Alice encolhe, cresce, fica gigante, voltar a ter o tamanho normal e se perde da sua própria identidade. No desenho animado a busca de Alice – uma busca inconsciente – é saber quem ela é, é voltar para casa, entender porque o coelho corre, qual a pressa.

O desenho termina com a lagarta perguntando a Alice: 'quem é você' e a maçaneta da porta avisando que Alice dorme lá fora. A forma como a história é colocada faz pensar. A busca por uma identidade é o único ponto de conexão realmente digno de nota entre o desenho e o filme de Tim Burton. Não que o filme seja ruim, longe disso.

O filme é ótimo como obra, mas é um fracasso ao tentar revelar Alice. Porque a Alice revelada por Tim Burton é quase unidimensional, enquanto aquela do desenho da Disney tinha muito mais nuances, ainda que o desenho fosse bidimensional.

O Filme de Tim Burton, já nos cinemas, comete dois pecados consideráveis com o original: primeiro dá à Alice a oportunidade de retorno ao ‘País das Maravilhas’ nove anos depois de sua primeira incursão. Segundo, tenta dar de graça o que Lewis preferiu deixar envolto em numa camada de confusão e mistério. De que trata, ou o quê, de fato, é contado na história.

Para Burton e seus roteiristas, a história de Alice fala de um processo de amadurecimento, onde ela deve aprender a tomar as rédeas de sua vida.

O visual do filme é bastante apurado e sombrio (ao gosto de Burton). No início somos apresentados a Alice ainda criança, após sua primeira viagem. A menina diz ao pai que sonhou com um mundo onde os animais falavam e um gato desaparecia. O diálogo soa estranho para uma criança, pela forma como é dita – a menina afirma que teme estar ficando louca.

Depois o filme dá um salto e vemos Alice e a mãe numa carruagem indo para uma festa. O pai da menina já faleceu e Alice será entregue em noivado a um rapaz. Ela confessa a mãe que tem sonhado o mesmo sonho há anos...

Desde o início Alice se mostra diferente, na forma de se vestir e de se portar, num universo alheio. Ela insiste em permanecer num mundo a parte e age como uma estranha.
Na festa, Alice cairá novamente na toca do coelho e fará outra viagem, agora com a incumbência de libertar o País das Maravilhas do domínio nefasto da Rainha de Copas, que está aprisionando todos os seres e transformando-os em seus escravos.

No filme de Burton, Alice terá que descobrir-se, ou descobrir sua própria força e crença para poder vencer a rainha, voltar para o seu mundo e ainda resolver todas as ‘encrencas’ que a esperam: um casamento a qual ela não quer viver e uma sociedade onde ela se sente alijada.

Os atores Helena Bonham Carter (Rainha de Copas), Mia Wasikowska (Alice), Johnny Depp (Chapeleiro Maluco), e Anne Hathaway (Rainha Branca) estão excelentes, mas o destaque é mesmo para Depp e Helena, magníficos.

Confesso que temi que Burton fizesse do filme de Alice uma xaropada sem fim e exacerbasse o que já era difícil no original. Mas, pelo contrário, o diretor faz com que o filme transcorra naturalmente e evita as distrações excessivas da história de Carroll. Todavia, reduz, ao meu ver, a história da menina que cai num buraco e literalmente é arremessada nas suas próprias confusões, sonhos e simbolismos.

No filme de Burton fica claro que a Rainha Vermelha reflete as emoções, os complexos e os medos que podem tiranizar e a Rainha Branca lembra as artimanhas mentais e ainda serve como contraponto do bem. O que acaba por dar um tom maniqueísta a história. Tons que Carroll tentou se afastar.

A história de Alice, no original, retoma idéias clássicas das fábulas morais que apontam para o interior do ser humano, questionado-o quem ele é e o que ele busca de fato. Talvez até fale mesmo do amadurecimento – apesar de eu entender que muitas fábulas abordam temas muito mais profundos. Prestem atenção: se, como num sonho, tudo representa Alice, como seria possível encaixar um final, sem diminuir a personagem? Carroll evitou fazer conclusões, deixando em aberto qual o destino da menina. Na verdade ele deixa tudo em aberto. Infelizmente, Burton, apesar de seu visual a lá gótico, parece temer a sombra que existe na menina e prefere dizer qual o passo ela irá dar ao sair da toca do coelho.

É interessante perceber quantas fábulas envolvem meninas e como elas são desenvolvidas: só para citar algumas, temos 'Chapeuzinho Vermelho', 'Branca de Neve', 'A Bela Adormecida'. Todas têm um príncipe - ou um lenhador no caso de Chapeuzinho - para formar o par masculino na trama. Já se falou que essas fábulas representam na verdade a busca do consciente, representado pelo príncipe, pela Alma, que é simbolizado pela virgem. Mas em Alice a viagem é solitária... por que será?...


Veja trecho do desenho de Alice

Nenhum comentário: